Auto-destruição sistémica global, insurgências e utopias

Auto-destruição sistémica global, insurgências e utopias

por Jorge Beinstein [*]

Aceleração da crise (mudança de discurso) 

O fatalismo global abandona a sua máscara optimista neoliberal de outros tempos (que sobreviveu durante o período inicial da crise desencadeada em 2008) e vai assumindo um pessimismo não menos avassalador. No passado, os meios de comunicação explicavam-nos que nada era possível fazer diante de um planeta capitalista cada dia mais próspero (ainda que praguejado por crueldades), só nos restava a possibilidade de nos adaptarmos. Uma ruidosa massa de peritos asseverava as grandes orientações com argumentos científicos irrefutáveis (os críticos não se podiam fazer ouvidos frente à avalanche mediática). Isso foi chamado de discurso único, surgia como um formidável instrumentos ideológico e prometia acompanhar-nos durante vários séculos ainda que tenha durado umas poucas décadas e se tenha esfumado em menos de um lustro. 

Agora a reprodução ideológica do sistema mundial de poder começa a chegar a um novo fatalismo profundamente pessimista baseado na afirmação de que a degradação social (estendida como resultado da “crise” ) é inevitável e prolongar-se-á durante muito tempo. 

Tal como no caso anterior os meios de comunicação e sua corte de peritos explicam-nos que nada mais é possível fazer senão adaptar-nos (novamente) perante fenómenos universais inevitáveis. Tal como qualquer outra civilização, a actual em última instância controla os seus súbditos persuadindo-os acerca da presença de forças imensamente superiores às suas pequenas existências impondo a ordem (e o caos) perante as quais devem inclinar-se respeitosamente. O “mercado global”, “Deus” ou outra potência de dimensão oceânica cumprem a referida função e seus sacerdotes, tecnocratas, generais, empresários ou dirigentes políticos não são senão executores ou intérpretes do destino, o que aliás legitima os seus luxos e abusos. 

É assim que em Setembro de 2012 Olivier Blanchard, economista chefe do Fundo Monetário Internacional, anunciava que “a economia mundial precisará de pelo menos dez anos para sair da crise financeira que começou em 2008” [1] . Segundo Blanchard, o resfriamento duradouros dos quatro motores da economia global (Estados Unidos, Japão, China e União Europeia) obriga-nos a afastar qualquer esperança numa recuperação geral a curto prazo. Ainda mais duro, em Agosto do mesmo ano o Banco Natixis, integrante de um grupo que assegura o financiamento de aproximadamente 20% da economia francesa, publicava um relatório intitulado “A crise da zona euro pode durar 20 anos” [2] . 

Encontramo-nos diante de um problema que as elites dominantes dificilmente podem resolver: a cultura moderna é filha do mito do progresso, repetidas vezes pode cativar os de baixo com a promessa de um futuro melhor neste mundo e ao alcance da mão, o que a diferencia de experiências históricas anteriores. As épocas de penúria são sempre descritas como provisórias, preparatórias de um grande salto rumo a tempos melhores. A reconversão da cultura dominante a um pessimismo de longa duração aceite pelas maiorias não parece viável, pelo menos é muito difícil realizá-la com êxito não só nos países ricos como também na periferia, sobretudo nas chamadas sociedades emergentes. Só populações radicalmente degradadas poderiam aceitar passivamente um futuro negro sem saída à vista, as elites imperialistas golpeadas, desestabilizadas pela decadência económica, sem projectos de integração social poderiam encontrar na degradação integral dos de baixo (os seus pobres internos e os povo periféricos) uma possível alternativa arriscada de sobrevivência sistémica. 

Auto-destruição 

O capitalismo como civilização entrou num período de declínio acelerado. Uma primeira aproximação ao tema mostra que nos encontramos perante o fracasso das tentativas de superação financeira da crise desencadeada em 2008, ainda que uma avaliação mais profunda nos levasse à conclusão de que o objectivo anunciado pelos governos dos países ricos (a recomposição da prosperidade económica) ocultava o verdadeiro objectivo: impedir o derrube da actividade financeira que fora a droga milagrosa das economias durante várias décadas. Desse ponto de vista, as estratégias aplicadas tiveram êxito: conseguiram adiar durante cerca de um lustro um desenlace que se aproximava velozmente quando desinchou a borbulha imobiliária norte-americana. 

Uma visão mais ampla nos indicaria que o ocorrido em 2008 foi o resultado de um processo iniciado entre fins dos anos 1960 e princípios dos anos 1970, quando a maior crise económica da história do capitalismo não seguiu ocaminho clássico (tal como o mostrado no século XIX e na primeira metade do século XX) com gigantescas quedas empresariais e uma rápida mega avalanche de desemprego nas potências centrais, e sim que foi controlada graças à utilização de poderosos instrumentos de intervenção estatal em combinação com reengenharias tecnológicas e financeiras dos grandes grupos económicos. 

Essa resposta não permitiu superar as causas da crise, na realidade potenciou-as até níveis nunca antes alcançados, desencadeando uma onda planetária de parasitismo e de saqueio de recursos naturais que engendrou um estancamento produtivo global em torno da área imperial do mundo, impondo a contracção económica do sistema não como fenómeno passageiro e sim como tendência de longa duração. 

Trata-se de um processo de decadência complexo. Basta repassar dados tais como o do volume da massa financeira equivalente a vinte vezes o Produto Mundial Bruto e seu pilar principal: o super endividamento público-privado nos países ricos que bloqueia a expansão do consumo e do investimento, o do declínio dos recursos energéticos tradicionais (sem substituição decisiva próxima) ou o da destruição ambiental. E também o da transformação das elites capitalistas numa teia de redes mafiosas que marcam o seu selo as estruturas de agressão militar, convertendo-as numa combinação de instrumentos formais (convencionais) e informais onde estes últimos vão predominando através de uma articulação inédita de bandos de mercenários e manipulações mediáticas de alcance global, “bombardeios humanitários” e outras acções inscritas em estratégias de desestabilização integral que apontam para a desestruturação de vastas zonas periféricas. Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria… México ilustram o futuro burguês das nações pobres. 

A área imperial do sistema degrada-se e, ao mesmo tempo, tenta degradar, tornar caótico o resto do mundo quando pretende controlá-lo, super-explorá-lo. É a lógica da morte convertida em pulsão central do capitalismo tornado senil e estendendo seu manto tanático (sua cultura final) que é, em ultima instância, auto-destruição, ainda que pretenda ser uma constelação de estratégias de sobrevivência. 

Cada passo das potências centrais rumo à superação da sua crise é na realidade um novo empurrão rumo ao abismo. Os subsídios concedidos aos grupos financeiros avultaram as dívidas públicas em conseguir a recomposição durável da economia e quando a seguir tentam travar o referido endividamento restringindo gastos estatais ao mesmo tempo que esmagam salários com o objectivo de melhorar os lucros dos empresários agravam o estancamento convertendo-o em recessão, deterioram as fontes dos recursos fiscais e eternizam o peso das dívidas. Frente ao desastre impulsionado pelas máfias financeiras levanta-se um coro variegado de neoliberais moderados, semi-keynesianos, regulacionistas e outros grupos que exigem a suavização dos ajustes e o estímulo ao investimento e ao consumo… ou seja, continuar a inchar as dívidas públicas e privadas… até que se recomponha um suposto círculo virtuoso de crescimento (e de endividamento) encarregado de pagar as dívidas e restabelecer a prosperidade… ao que os tecnocratas duros (sobretudo na Europa) respondem que os estados, as empresas e os consumidores estão saturados de dívidas e que o velho caminho da exuberância monetário-consumista deixou de ser transitável. Ambos os lados têm razão porque nem os ajustes nem as repartições de fundos são viáveis a médio praxo, na realidade o sistema é inviável. 

As agressões imperiais quando conseguem derrotar os seus “inimigos” não conseguem instalar sistemas coloniais ou semi-coloniais estáveis como no passado e sim engendrar espaços caóticos. Assim é porque a economia mundial em declive não permite integrar as novas zonas periféricas submetidas, os espaços conquistados não são absorvidos por negócios produtivos ou comerciais medianamente estáveis da metrópole e sim saqueados por grupos mafiosos e por vezes simplesmente empurrados para a decomposição. Enquanto isso os gastos militares e paramilitares dos Estados Unidos, o centro hegemónico do capitalismo, incrementam o seu défice fiscal e as suas dívidas. 

Fica assim a descoberto um aspecto essencial do imperialismo do século XXI em mutação rumo a uma dinâmica de desintegração geral de alcance planetário. Isto é advertido não só por alguns partidários do anti-capitalismo como também, desde há algum tempo, por um número crescente de “prestigiosos” (mediáticos) defensores do sistema como o guru financeiro Nouriel Roubini quando proclamava em meados de 2011 que o capitalismo havia entrado num período de auto-destruição [3] . 

É um lugar comum a afirmação de que o capitalismo não ruirá por si só e sim que é necessário derrubá-lo. Em consequência, aqueles que assinalam a tendência para a auto-destruição do sistema são acusados de ignorar suas fortalezas e sobretudo de fomentar a passividade ou as ilusões acerca de possíveis ” vitórias fáceis” que desarmam, distraem os que lutam por um mundo melhor. 

Na realidade, ignorar ou subestimar o carácter autodestrutivo do capitalismo global do século XXI significa desconhecer ou subestimar fenómenos que sobredeterminam seu funcionamento, como a hegemonia do parasitismo financeiro, a catástrofe ecológica em curso, o declínio dos recursos naturais especialmente os energéticos catalisado pela dinâmica tecnológica dominante, a incapacidade da economia mundial para continuar a crescer, o que a leva a acelerar a concentração de riquezas e a marginalização de milhares de milhões de seres humanos que“estão a mais” do ponto de vista da reprodução do sistema. Em suma a entrada numa era marcada pela reprodução ampliada negativa das forças produtivas da civilização burguesa, ameaçando a longo prazo a sobrevivência da maior parte da espécie humana. 

Presenciamos então uma subestimação de aparência voluntarista que oculta a devastadora radicalidade da decadência e, em consequência, a necessidade da irrupção de um voluntarismo insurgente (anti-capitalista) capaz de impedir que o derrube nos sepulte a todos. Dito de outra maneira, não nos encontramos diante de uma “crise cíclica” com alternativas de recomposição de uma nova prosperidade burguesa, ainda que seja elitista, e sim diante de um processo de degeneração sistémica total. 

A história das civilizações recorda-nos numerosos casos (a começar pelo do Império Romano) em que a hegemonia civilizacional que conseguia reproduzir-se em meio a decadência anulava as tentativas superadoras engendrando decomposições que incluíam vítimas e verdugos. 

A contra-revolução ideológica que dominou o pós guerra fria cunhou uma espécie de marxismo conservador que caricaturou a teoria da crise de Marx reduzindo-a a uma sucessão infinita de “crises cíclicas” das quais o capitalismo sempre conseguia sair graças à exploração dos trabalhadores e da periferia. O ogre era denunciado, ficando demonstrado uma vez mais quem era o vilão do filme. 

Mas a história não se repete. Nenhuma crise cíclica mundial se parece com outra e todas elas, para serem realmente entendidas, devem ser incluídas no percurso temporal do capitalismo, no seu grande e único super-ciclo. É o que nos permite, por exemplo, distinguir as crises cíclicas de crescimento, juvenis do século XIX, das crises senis de finais do século XX e do século XXI. 

Por outro lado, é necessário descartar a ideia superficial de que a auto-destruição do sistema equivale ao suicídio histórico isolado das elites globais libertando automaticamente das suas cadeias o resto do mundo, o qual um bom dia descobre que o amo morreu e então dá largas à sua criatividade. É o mundo burguês na sua totalidade o que iniciou a sua auto-destruição e não só as suas elites. É toda uma civilização com suas hierarquias e mecanismos de reprodução simbólica, produtiva, etc que chega ao seu teto histórico e começa a contrair-se, a desordenar-se pretendendo arrastar todos os seus integrantes, centro e periferia, privilegiados e marginais, opressores e oprimidos… O naufrágio inclui todos os passageiros do navio. 

Decadência global 

A auto-destruição surge como o culminar da decadência e abrange o conjunto da civilização burguesa não como um fenómeno “estrutural” e sim como totalidade histórica com todas as suas tendências às costas: culturais, militares, produtivas, institucionais, religiosas, tecnológicas, morais, científicas, etc. Trata-se da etapa descendente de um prolongado processo civilizacional com um auge de pouco mais de duzentos anos, antecedido por uma prolongada etapa preparatória e que chegou a assumir uma dimensão planetária. 

Decadência geral, muito mais que “crise” (as crises que se vão sucedendo aparecem como turbulências, sacudidelas no percurso da enfermidade), o fenómeno inclui as duas configurações básicas do sistema: a central (imperialista, “desenvolvida”, rica) e a periférica (“subdesenvolvida”, globalmente pobre, “emergente” ou submersa, com suas áreas de prosperidade dependente e de miséria extrema). 

Os primeiros anos posteriores à ruptura de 2008 mostram o começo do fim da prosperidade das economias dominantes, ao passo que um bom número de países periféricos continuavam a crescer – sobretudo a China em torno da qual teceram-se ilusões acerca de uma recomposição mundial do capitalismo a partir do subdesenvolvimento convertido em avalanche industrial-exportadora. Mas a expansão da economia chinesa dependia do poder de compra dos seus principais clientes: os Estados Unidos, Japão e a União Europeia. Como já se pôde ver em 2012, o desinchar desses compradores desincha o engendro industrial exportador da periferia (o negócio da super-exploração da mão-de-obra barata chinesa encontra limites significativos). Em síntese: não há nenhuma desconexão capitalista possível do declínio mundial do sistema. 

A decadência é, antes de mais nada, decadência ocidental, degradação do centro imperialista. Desde fins do século XVIII, quando se iniciou a ascensão industrial, até os primeiros anos do século XIX, o capitalismo esteve marcado pela dominação inglesa-norte-americana. A Inglaterra no século XIX e os Estados Unidos na maior parte do século XX cumpriram a função reguladora do conjunto do sistema, impondo a hegemonia ocidental e ao mesmo tempo subordinando os rivais que apareciam no interior do Ocidente. A França foi deslocada nos princípios do século XIX e a Alemanha na primeira metade do século XX. 

A marca ocidental do capitalismo é dada não só por factores económicos e militares como também por um conjunto mais vasto de aspectos decisivos do sistema (estilo de consumo, arte, ciência, perfis tecnológicos, concepções políticas, etc). O que agora é visto como despolarização ou fim da unipolaridade, ou seja, como perda de peso do imperialismo norte-americano (paralelo ao declínio europeu) sem substitutivo à vista. Ela exprime a desarticulação do capitalismo enquanto sistema global que deve ser entendida não só como desestruturação política e militar como também cultural no sentido amplo do conceito. É a história de uma civilização que entra no ocaso. 

Dito de outra maneira, a reprodução ampliada universal mas não ocidentalista do capitalismo é uma ilusão sem base histórica, sem embriões visíveis reais no presente. Recordemos o fiasco do chamado milagre japonês dos anos 1960-1970-1980 e os prognósticos dessa época acerca do “Japão primeira potência mundial do século XXI”seguidos até há pouco por especulações não menos fantasiosas sobre a iminente ascensão chinesa à categoria de primeira potência capitalista do planeta. 

Esgotamento financeiro 

É possível assinalar fenómenos que assinalam o declínio sistémico. Um deles é o da hipertrofia financeira que, como sabemos, foi-se expandindo enquanto desciam as taxas de crescimento do Produto Mundial Bruto a partir dos anos 1970. Quando estalou a crise de 2008 a massa financeira global equivalia aproximadamente a umas vinte vezes do PMB. Sua coluna vertebral visível, os produtos financeiros derivados registados pelo Banco da Basileia em Junho de 2008 representavam 11,7 o PMB (contra 2,5 vezes em Junho de 1998, 3,9 vezes em Junho de 2002, 5,5 vezes em Junho de 2004, 7,8 vezes em Junho de 2006). Mas desde meados de 2008 essa massa deixou de crescer tanto na sua relação com o PMB como em termos absolutos. Havia chegado nesse momento a uns 683 milhões de milhões de dólares nominais, alcançou os 703 milhões de milhões em Junho de 2011 baixando para 647 milhões de milhões em Dezembro de 2011 [4] . 

Figura 1.

Encontramo-nos agora diante de um fenómeno de esgotamento financeiro. No passado (posterior aos anos 1970) a expansão das dívidas dos estados, das empresas e dos consumidores permitiu o crescimento das economias dos países ricos mas o endividamento foi chegando ao limite enquanto eram saturados mercados importantes (como os do automóvel e outros bens duradouros). Dívidas, consumos tradicionais e parasitários, redes comerciais, etc em torno dos quais eram inchadas as actividades especulativas alcançaram sua fronteira em 2007-2008. A droga havia terminado por esgotar a dinâmica capitalista e, ao decaírem, os clientes estancaram os negócios dos dealers, ou seja, do espaço hegemónico do sistema. 

O capitalismo financiarizado, resultado de uma prolongada crise de super-produção potencial controlada mas não resolvida, parasita cada dia mais voraz, finalmente esgotou a sua vítima e ao fazê-lo bloqueou a sua própria expansão. 

Visto de outro modo, a reprodução ampliada do capitalismo ao atravessar com êxito uma longa sucessão de crises de super-produção deu finalmente asas ao filho de um dos seus pais fundadores: as finanças. Fê-lo para sobreviver, porque sem essa droga não teria podido sair do atoleiro dos anos 1970-1980. Iniciado o caminho, ficou aprisionado para sempre. Quanto mais difícil era o crescimento mais droga necessitava o viciado e, depois de cada breve onda de prosperidade económica global (sua euforia efémera) chegava o estado depressivo que exigia mais droga. As taxas de crescimento ziguezagueavam em torno de uma linha com tendência declinante e a massa financeira mundial expandia-se em progressão geométrica. A festa terminou em 2008. 

Bloqueio energético e crise tecnológica. 

Outro fenómeno importante é o do bloqueio energético. O capitalismo industrial pôde alçar voo em finais do século XVIII porque a Europa imperial acrescentou à exploração colonial e à desestruturação do seu universo rural (que lhe proporcionou mão-de-obra abundante e barata) um processo de emancipação produtiva em relação às limitadas e caras fontes de energia convencionais como as correntes dos rios que permitiam o funcionamento dos moinhos, a madeira das florestas e a energia animal. A solução foi o carvão mineral e em torno do mesmo a ampliação sem precedentes da exploração mineira. Seu pólo dinâmico foi o capitalismo inglês. 

A depredação crescente de recursos naturais atravessou todos os modelos tecnológicos do capitalismo e, se considerarmos a totalidade do ciclo industrial (entre fins do século XVIII e a actualidade), poderíamos referir-nos aosistema tecnológico da civilização burguesa baseado na dissociação cultural entre o homem e a “natureza” – assumindo esta última como universo hostil, objecto de conquista e pilhagem. 

O auge do carvão mineral do século XIX foi sucedido pelo do petróleo no século XX e nos princípios do século XXI fora esgotada aproximadamente a metade da reserva original desse recurso. Isso significa que já não encontramos na zona qualificada como pico, ou nível máximo possível de extracção petrolífera a partir do qual estende-se um inevitável declínio extractivo. Desde meados da década passada deixou de crescer a extracção de petróleo bruto. 

Supondo que existam substitutivos energéticos viáveis em grande escala e a longo prazo quando aceitamos as promessas tecnológicas do sistema (para um futuro incerto) e os introduzimos no mundo real com seus ritmos de reprodução concretos a médio e longo prazo, encontramo-nos diante de um bloqueio energético insuperável. Se pensarmos no que resta da década actual comprovaremos que não aparecem substitutivos energéticos capazes de compensar o declínio petrolífero. 

Dito de outro modo, o preço do petróleo tende a subir e a especulação financeira em torno do produto pressiona-o ainda mais para cima. Além disso, alguma vez aventura militar ocidental, como por exemplo um ataque israelense-estado-unidense contra o Irão e o consequente encerramento do estreito de Ormuz, levariam o preço às nuvens. Tudo isso significa que os custos energéticos da economia converteram-se num factor decisivo limitativo da sua expansão e num cenário turbulento causariam uma contracção catastrófica das actividades económicas a nível global. 

Não se trata só do petróleo e sim de um amplo leque de recursos minerais que se encontram no pico da sua exploração, próximo do mesmo ou já na fase de extracção em declínio [5] afectando a indústria e a agricultura. Exemplo: o declínio da produção mundial de fosfatos, componente essencial da produção de alimentos, desde há pouco mais de duas décadas [6] . 

Passamos então do tema do bloqueio energético a outro mais amplo, o do bloqueio dos recursos minerais em geral e daí ao do sistema tecnológico da civilização burguesa que o engendrou. No referido sistema temos de incluir suas matérias-primas básicas, seus procedimentos produtivos e seu apoio técnico-científico, sua dinâmica e estilo de consumo civil e de guerra, etc, ou seja, do capitalismo como civilização. 

Pasamos entonces del tema del bloqueo energético a otro más vasto, el del bloqueo de los recursos mineros en general y de allí al del sistema tecnológico de la civilización burguesa que lo ha engendrado. En dicho sistema tenemos que incluir a sus materias primas básicas, sus procedimientos productivos y su respaldo técnico-científico, su dinámica y estilo de consumo civil y de guerra, etc., es decir al capitalismo como civilización. 

Figura 2.

Figura 3.

Assistimos agora à busca vertiginosa de “substitutivos” energéticos, de diversos minerais, etc, destinados a continuar a alimentar uma estrutura social decadente cuja dinâmica de reprodução nos diz que mais da metade da humanidade “está a mais” e que em consequência a “civilização” traçou um caminho futuro assinalado por uma sucessão de mega genocídios. 

Mas a decadência leva-nos a pensar que todos esses “recursos necessários” para o sustento de sociedades e elites parasitárias não são necessários em outro tipo de civilização ou pelo menos são-no em volumes muito mais reduzidos. Não estão a mais os pobres e excluídos do planeta, está a mais o capitalismo com seus objectos de consumo luxuoso, seus sistema militares, seu desperdício obsceno. 

Da super-produção controlada à crise geral de sub-produção 

É possível descreve o trajecto de algo mais de quatro décadas que conduziu à situação actual. No começo, entre aproximadamente 1968 e 1973, encontrámo-nos perante uma grande crise de super-produção nos países centrais. Como já assinalei, esta não derivou num derrube generalizado de empresas nem numa avalanche de desemprego no estilo “clássico” e sim num complexo processo de controle da crise que incluiu instrumentos de intervenção pública destinados a sustentar a procura, a liberalização dos mercados financeiros, esforços tecnológicos e comerciais das grandes empresas. E também a ampliação do espaço do sistema, integrando por exemplo a ex União Soviética como fornecedora de gás e petróleo e a China como fornecedora de mão-de-obra industrial barata. 

As mudanças não se verificaram de maneira instantânea e sim gradualmente em resposta às sucessivas conjunturas, mas finalmente converteram-se num novo modelo de gestão do sistema chamado neoliberalismo. Este gira em torno de três orientações decisivas marcadas pelo parasitismo: a financiarização da economia, a militarização e o saqueio desenfreado de recursos naturais. 

O processo de financiarização concentrou capitais parasitando sobre a produção e o consumo, a incorporação de centenas de milhões de operários chineses e de outras zonas periféricas e o saqueio de recursos naturais permitiu baixar custos, desacelerar a queda dos lucros industriais. 

O resultado visível ao principiar o século XXI foi o afogamento financeiro do sistema, a degradação ambiental e o começo do declínio da exploração de numerosos recursos naturais, tanto os não renováveis como os renováveis (ao serem rompidos seus ciclos de reprodução). 

Finalmente, a crise de super-produção controlada engendra uma crise prolongada de sub-produção que agora está a dar os seus primeiros passos. O sistema encontra “barreiras físicas” para a reprodução ampliada das suas forças produtivas, os recurso naturais declinam, não se trata de “fronteiras exógenas”, de bloqueios causados por forças sobre-humanas e sim de auto-bloqueios, dos efeitos da actividade produtiva do capitalismo, prisioneiro de um sistema tecnológico muito dinâmico baseado na exploração selvagem da natureza e na expansão acelerada das massas proletárias do planeta (povoações miseráveis da periferia, operários pobres, camponeses submersos, marginais de todo tipo, etc). 

Assistimos então ao paradoxo de indústrias como a automobilística com altos níveis de capacidade produtiva ociosa. Se por alguma magia dos mercados essas empresas chegassem a encontrar procuras adicionais significativas verificar-se-iam saltos espectaculares nos preços de uma ampla variedade de matérias-primas, como o petróleo por exemplo, que anulariam as referidas procuras. 

Não estamos a passar do crescimento ao estancamento. Este último não é senão o trânsito rumo à contracção, mais ou menos rápida, mais ou menos caótica do sistema, rumo à reprodução ampliada negativa das forças produtivas ao ritmo da concentração de capitais, da marginalização social e do esgotamento dos recursos naturais. Não tem de ser um processo de declínio inexorável da espécie humana, trata-se da decadência de uma civilização, dos seus sistema produtivos e perfis de consumo. 

Capitalismo mafioso 

Deste processo faz parte a mutação do núcleo dirigente do capitalismo mundial num conglomerado de redes parasitárias mafiosas. Uma de suas características psicológicas é o encurtamento temporal de expectativas, curto-prazismo que juntamente com outras perturbações leva-a a uma crescente crise de percepção da realidade. O negócio financeiro, enquanto cultura hegemónica do mundo empresarial, o gigantismo tecnológico (especialmente no capítulo militar), a super concentração económica e outros factores convergentes impulsionam esta desconexão psicológica libertando uma ampla variedade de projectos irracionais que servem como apoio de políticas económicas, sociais, comunicacionais, militares, etc (o corpo parasitário engorda e a mente racional do obeso contrai-se). A elite global dominante (imperialista) vai-se convertendo num sujeito extremamente perigoso obstinado com o emprego salvador do que considera o seu instrumento imbatível: o aparelho militar (ainda que experiências concretas como no passado a sua derrota no Vietname e actualmente o atolamento no Afeganistão demonstrem o contrário). 

Três enfoques convergentes. 

É possível abordar a história da civilização burguesa, sua gestação, ascensão e decadência, a partir de três visões de longo prazo. 

A primeira delas enfoca uma trajectória de aproximadamente quinhentos anos. Arranca entre fins do século XV e princípios do século XVI europeu com a conquista da América e a pilhagem das suas riquezas gerando uma efusão de ouro e prata sobre as sociedades imperiais europeias e impulsionando a sua expansão económica e transformação burguesa. 

A seguir ao primeiro enfartamento (século XVI) chegou o tempo da digestão e da desestruturação dos bloqueios pré-capitalistas e da emergência de embriões sólidos do estado e da ciência modernos, bem como de núcleos capitalistas emergentes, tudo isso exprimido como a “longa crise do século XVI”. 

Ao começar o século XVIII essas sociedades já estavam culturalmente preparadas para a grande aventura capitalista. Seu arranque foi assinalado por uma crise de média duração entre fins do século XVIII e começos do século XIX marcado pela revolução industrial inglesa, pela revolução francesa e pelas guerras napoleónicas. Foi atravessando todo o século XIX ao ritmo das expansões coloniais e neocoloniais e das transformações industriais e políticas. 

Cerca de 1900 o capitalismo, com centro no Ocidente, havia estabelecido o seu sistema imperial a nível planetário. Até chegar à primeira guerra mundial que assinala o fim da juventude do sistema e o início da uma nova crise de média duração entre 1914 e 1945, ponto de inflexão entre a etapa juvenil ascendente e uma era de turbulências que começam a mostrar os limites históricos de um sistema que dispõe de recursos (financeiros, tecnológicos, naturais, demográficos, militares) para prolongar a sua existência em meio a ameaças como a aparição da União Soviética e a seguir a revolução chinesa, etc. 

E depois de uma recomposição que traz a prosperidade a um capitalismo amputado, acossado (entre fins dos anos 1940 e fins dos anos 1960) o sistema entra numa crise longa (que consegue apanhar os grandes ensaios proto-socialistas: a URSS e a China) que se prolonga até o presente. Esta última etapa, que já dura mais de quatro décadas, caracteriza-se pela descida gradual ziguezagueaste e persistente das taxas globais de crescimento económico sobredeterminado pela desaceleração das economias imperialistas (em primeiro lugar os Estados Unidos) e pelo incremento das mais diversas formas de parasitismo (principalmente o financeiro). 

Nesta etapa é possível distinguir um primeiro período entre 1968-1973 e 2007-2008 de desaceleração relativamente lenta, de perda gradual de dinamismo, e um segundo período (no qual nos encontramos) de esgotamento do crescimento apontado à contracção geral do sistema. 

Em síntese: a partir do primeiro impulso colonial com êxito (no século XVI, o anterior das Cruzadas havia fracassado) é possível fazer girar a história da civilização burguesa em torno de quatro grandes crise; a longa crise do século XVII vista como etapa preparatória do grande salto, a crise média duração de nascimento do capitalismo industrial (fins do século XVIII – princípios do XIX), uma segunda crise de média duração (1914-1945) seguida por uma prosperidade de aproximadamente um quarto de século e finalmente uma nova crise de longa duração (que se inicia nos fins dos anos 1960) de decadência do sistema, suave primeiro e acelerada desde fins da primeira década do século XXI. 

Figura 4.

Um segundo enfoque, restrito a pouco mais de duzentos anos, arranca com a revolução industrial inglesa, a Revolução Francesa, a independência dos Estados Unidos, as guerras napoleónicas e outros acontecimentos que assinalam o início do capitalismo industrial, consolidando-se numa longa etapa juvenil do sistema abrangendo a maior parte do século XIX. As turbulências são curtas, as crises de super-produção seguindo o modelo desenvolvido por Marx são “crises de crescimento” do sistema que vão acumulando feridas, deformações, problemas que acabam por provocar o grande desastre de 1914. Karl Polanyi refere-se ao papel da cúpula financeira europeia na manutenção de equilíbrios económicos e políticos, nessa elite está a base da futura hipertrofia financeira dos finais do século XX [7] . 

A seguir à etapa juvenil desenvolve-se um período de maturidade assinalado por guerras, fortes depressões uma prosperidade de média duração (1945-1970). 

Com a crise dos anos 1970, o fim do padrão dólar, a derrota norte-americana no Vietname, a estagflação e os choques petrolíferos, etc, o capitalismo entra na sua velhice que deriva em senilidade. O conceito de “capitalismo senil” foi introduzido por Roger Dangeville nos fins dos anos 1970 assinalando que a partir desse momento o sistema tornava-se senil [8] , desagregava-se, perdia o rumo. Na realidade, a senilidade do sistema torna-se evidente três décadas depois, a partir da explosão financeira-energética-alimentar de 2008 quando se acelera a queda do crescimento até nos aproximarmos agora de crescimentos iguais a zero ou negativos no conjunto da zona central do capitalismo e quando o motor financeiro parou apontando para a queda. 

Figura 5.

Um terceiro enfoque, de desagregação do superciclo em “ciclos parciais”, permite pormenorizar fenómenos decisivos da história do sistema. É necessário limitar os aspectos de autonomia desses “ciclos” fazendo-os interactuar entre si e referindo-os sempre à totalidade sistémica. 

O crepúsculo do sistema arranca com as turbulências de 2007-2008, a multiplicidade de “crises” que estalaram nesse período (financeira, produtiva, alimentar, energética) convergiu com outras como a ambiental ou a do Complexo Industrial-Militar do Império atolado nas guerras asiáticas. 

O cancro financeiro irrompeu triunfal entre fins do século XIX e princípios do século XX e obteve o controle absoluto do sistema sete ou oito décadas depois, mas o seus desenvolvimento havia começado muito tempos antes (vários séculos) financiando estados imperiais onde se expandiam as burocracia civis e militares ao ritmo das aventuras coloniais-comerciais e a seguir também em negócios industriais cada vez mais concentrados. A hegemonia da ideologia do progresso e do discurso produtivista serviu para ocultar o fenómeno, instalou a ideia de que o capitalismo, ao contrário das civilizações anteriores, não acumulava parasitismo e sim forças produtivas que ao se expandirem criavam problemas de adaptação superáveis no interior do sistema mundial, resolvidos através de processo de “destruição-criadora”. 

Antiga Fábrica da Pólvora de Barcarena, hoje museu.Pela sua parte, o militarismo moderno afunda as suas raízes mais fortes no século XIX ocidental, desde as guerras napoleónicas, chegando à guerra franco-prussiana até irromper na Primeira Guerra Mundial como “Complexo Militar-Industrial” (ainda que seja possível encontrar antecedentes importantes no Ocidente nas primeiras indústrias de armamentos de tipo moderno aproximadamente a partir do século XVI). Foi percebido a princípio como um instrumento privilegiado das estratégias imperialistas e mais adiante como reactivador económico do capitalismo. Só se viam certos aspectos do problema mas ignorava-se ou subestimava-se sua profunda natureza parasitária, o facto de que por trás do monstro militar ao serviço da reprodução do sistema ocultava-se um monstro muito mais poderoso: o do consumo improdutivo, causador de défices públicos que não incentivam a expansão e sim o estancamento ou a contracção da economia. 

Actualmente, o Complexo Militar-Industrial norte-americano (em torno do qual reproduzem-se os dos seus sócios da NATO) gasta em termos reais mais de um milhão de milhões de dólares por ano, contribui de maneira crescente para o défice fiscal e em consequência para o endividamento do Império (e para a prosperidade dos negócios financeiros beneficiários do referido défice). Sua eficácia militar é declinante mas a sua burocracia é cada vez maior, a corrupção penetrou em todas as suas actividades, já não é o grande gerador de empregos como em outras épocas, o desenvolvimento da tecnologia industrial-militar reduziu significativamente essa função. A época do keynesianismo militar como estratégia anti-crise eficaz pertence ao passado. 

Presenciamos actualmente nos Estados Unidos à integração de negócios entre a esfera industrial-militar, as redes financeiras, as grandes empresas energéticas, as camarilhas mafiosas, as “empresas” de segurança e outras actividades muito dinâmicas que formam o espaço dominante do sistema de poder imperial. A história das decadências de civilizações, a do Império Romano por exemplo, mostram que já começado o declínio geral e durante um longo período posterior a estrutura militar continua a expandir-se sustendo tentativas desesperadas e inúteis de preservação do sistema. 

Em consequência a decadência geral e a exacerbação da agressividade militarista do Império poderiam chegar a ser perfeitamente compatíveis, donde se deriva a conclusão de que ao cenário previsível de desintegração mais ou menos caótica da super-potência deveríamos acrescentar outro cenário não menos previsível de declínio sanguinário, belicoso. 

Tão pouco a crise energética em torno da chegada do “Peak Oil” deveria ser restrita à história das últimas décadas. É necessário entendê-la como fase declinante do longo ciclo da exploração moderna dos recursos naturais não renováveis. Esse ciclo energético de dois séculos condicionou todo o desenvolvimento tecnológico do sistema e exprimiu-o, foi a vanguarda da dinâmica depredadora do capitalismo estendida ao conjunto dos recursos naturais e do ecosistema em geral. 

Aquilo que durante quase dois séculos foi considerado como uma das grandes proezas da civilização burguesa, a sua aventura industrial e tecnológica, aparece agora como a mãe de todos os desastres, como uma expansão depredadora que põe em perigo a sobrevivência da espécie humana. 

Em síntese, o desenvolvimento da civilização burguesa durante os últimos dois séculos (com raízes num passado ocidental muito mais prolongado) acabou por engendrar um processo irreversível de decadência, a depredação ambiental e a expansão parasitária estão na base do fenómeno. 

Existe uma inter-relação dialéctica perversa entre a expansão da massa global de lucros, sua velocidade crescente, a multiplicação das estruturas burocráticas civis e militares de controle social, a concentração mundial de rendimentos, a ascensão da maré parasitária e a depredação do ecosistema. 

As revoluções tecnológicas do capitalismo aparentemente foram as suas tábuas de salvação. Assim aconteceu durante muito tempo incrementando a produtividade industrial e agrária, melhorando as comunicações e os transportes, mas o longo prazo histórico, no balanço de vários séculos constituem sua armadilha mortal, acabaram por degradar o desenvolvimento que impulsionaram por estarem estruturalmente baseadas na depredação ambiental, ao gerar um crescimento exponencial de massas humanas super-exploradas e marginalizadas. 

O progresso técnico integra assim o processo de auto-destruição geral do capitalismo (é sua coluna vertebral) na rota em direcção a um horizonte de barbárie. Não se trata da incapacidade do actual sistema tecnológico para continuar a desenvolver forças produtivas e sim da sua alta capacidade enquanto instrumento de destruição líquida de forças produtivas. Confirma-se assim o sombrio prognóstico formulado por Marx e Engels em pleno auge juvenil do capitalismo:

“Dado um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas, surgem forças de produção e de meios de comunicação tais que, nas condições existentes só provocam catástrofes, já não são mais forças de produção e sim de destruição” [9] .

Finalmente, o ciclo histórico iniciado em fins do século XVIII contou com dois grandes articuladores hoje em declínio: a dominação imperialista anglo-norte-americana (etapa inglesa no século XIX e norte-americana no século XX) e o ciclo do estado burguês desde a sua etapa “liberal industrial” no século XX, passando pela sua etapa intervencionista produtiva (keynesiana clássica) em boa parte do século XX para chegar à sua degradação “neoliberal” a partir dos anos 1970-1980. 

Capitalismo mundial, imperialismo e predomínio anglo-norte-americano constituem um só fenómeno. Uma primeira conclusão é que a articulação sistémica do capitalismo surge historicamente indissociável do articulador imperial (história imperialista do capitalismo). Uma segunda conclusão é que ao tornar-se cada vez mais evidente que no futuro previsível não surge nenhum novo articulador imperial ascendente à escala global, então desaparece do futuro uma peça decisiva da reprodução capitalista global – a menos que suponhamos o surgimento de uma espécie de mão invisível universal (e burguesa) capaz de impor a ordem (monetária, comercial, político-militar, etc). Nesse caso estaríamos a extrapolar ao nível da humanidade futura a referência à mão invisível (realmente inexistente) do mercado capitalista apregoada pela teoria económica liberal. 

O declínio imperial do Ocidente inclui o do seu suporte estatal abrangendo uma primeira etapa (neoliberalismo) marcada pelo endividamento público, a submissão do estado aos grupos financeiros, a concentração de rendimentos, a elitização e perda de representatividade dos sistemas políticos e uma segunda etapa de saturação do endividamento público, arrefecimento económico e crise de legitimidade do estado. 

O colonialismo-imperialismo e o estado moderno, em termos históricos, foram pilares essenciais da construção da civilização burguesa. Sobre os antecedentes coloniais do capitalismo não há muito mais a acrescentar. Quanto à relação estado-burguesia é evidente sobretudo a partir do século XVI na Europa a estreita interacção entre ambos os fenómenos. Não é possível entender a ascensão do estado moderno sem o apoio financeiro e de toda a articulação social emergente da burguesia nascentes cujo nascimento e consolidação teriam sido impossíveis sem o aparelho de coerção e o espaço de negócios oferecido pelas monarquias militaristas. E também é necessário levar em conta o mútuo apoio legitimador, cultural, social que permitiu a ambos crescer, transforma-se até chegar à instauração do capitalismo industrial e sua contrapartida estatal. A história da modernidade sugere-nos tratá-los como partes de um único sistema (heterogéneo) de poder. 

No final, na fase descendente do capitalismo enviesado pela financiarização integral da economia, o Estado (em primeiro lugar os estados da grandes potências) também se financiariza, vai-se convertendo numa estrutura parasitária (uma componente das redes parasitárias), entra em decadência. 

A convergência de numerosas “crises” mundiais pode indicar a existência de uma perturbação grave mas não necessariamente o arranque de um processo de decadência geral do sistema. A decadência surge como a última etapa de um longo super ciclo histórico, sua fase declinante, seu envelhecimento irreversível (sua senilidade). Extremando os reducionismo tão praticados pela “ciências sociais” poderíamos falar de “ciclos” parciais: energético, alimentar, financeiro, produtivo, estatal e outros, e assim descrever em cada caso trajectórias que têm início no Ocidente entre fins do século XVIII e princípios do século XIX com raízes anteriores e envolvendo espaços geográficos crescentes até assumir finalmente uma dimensão planetária para a seguir declinar cada um deles. A coincidência histórica de todas essas declinações e detecção fácil de densas inter-relações entre todos esses “ciclos” sugere-nos a existência de um único super ciclo que os inclui a todos. Dito de outro modo, trata-se do ciclo da civilização burguesa que se exprime através de uma multiplicidade de aspectos parciais. 

Figura 6.

O século XX 

A partir de um enfoque multi-secular do capitalismo é possível avançar uma explicação da ascensão e derrota da onda anti-capitalista que abalou o século XX. A Revolução Russa inaugurou em 1917 uma longa sucessão de rupturas que ameaçaram erradicar o capitalismo como sistema universal. O arranque revolucionário apoiava-se numa crise profunda e prolongada do sistema que poderíamos localizar aproximadamente entre 1914 e 1945 e cujas sequelas estenderam-se para além desse período. 

A referida crise foi interpretada pelos revolucionários russos como o começo do fim do sistema mas este, ainda que sofrendo sucessivas amputações “socialistas” (Europa do Leste, China, Cuba, Vietname…) e a proliferação de rebeldias e autonomizações nacionalistas na periferia pôde finalmente recompor-se e seus inimigos foram caindo um após o outro através de restaurações explícitas como no caso soviético ou sinuosas como no caso chinês. As elites ocidentais puderam então afirmar que o tão anunciado declínio do capitalismo e sua substituição socialista não foi mais que uma ilusão alimentada pela crise mas que esta ao ser superada a ilusão se foi esfumando. E alguns gurus, como o agora esquecido Francis Fukuyama, até proclamavam o fim da história e o pleno desenvolvimento de um milénio capitalista liberal. 

Existe uma visão falsa (mas não totalmente falsa) da decadência ocidental frente à emergência do mundo novo a partir da Revolução Russa. Mesmo se entendida como “decadência hegemónica”, essa visão pareceu ficar desmentida pela realidade com o submetimento chinês (1978) e o derrube soviético (1991). Contudo era sustentada desde 1958-73 quando começaram a declinar as taxas de crescimento do Produto Mundial Bruto e parcialmente confirmada desde 2008 porque o sistema degrada-se velozmente (condição necessária para a sua superação) ainda que seu coveiro não apareça ou apareça numa dispersão de pequenas doses historicamente insuficientes. 

Insurgências (rumo à negação absoluta do sistema) 

A contrapartida positiva da decadência poderia ser sintetizada como a combinação de resistências e ofensivas de todo tipo contra o sistema a operarem como um fenómeno de dimensão global e a actuarem em ordem dispersa, exprimindo uma grande diversidade de culturas, diferentes níveis de consciência e de formas de luta. 

Desde os indignados europeus ou norte-americanos que (por agora) só pretendem depurar o capitalismo dos seus tumores financeiros e elitistas, até os combatentes afegãos a lutarem contra o invasor ocidental ou a insurgência colombiana animada pela perspectivas anti-capitalista passando um muito complexo leque de movimentos sociais, minorias e pequenos grupos críticos e rebeldes. 

Oposições a governos abertamente reaccionários e a ocupações mas também às fachadas democráticas mais ou menos deterioradas que tentam dar governabilidade ao capitalismo. O que coloca a hipótese da convergência e radicalização desses processos e então a possibilidade de aprofundar o conceito de insurgência global pensado como realidade em formação alimentada pelo declínio da civilização burguesa. A alternativa insurgente a emergir como recusa e a apontar à negação radical do sistema e ao mesmo tempo a abrir o espaço das utopias pós capitalistas. 

O sujeito central da insurgência é a humanidade à qual a dinâmica da marginalização e da super-exploração (a dinâmica da decadência) empurra à rebelião como alternativa à degradação extrema. Trata-se de milhares de milhões de habitantes dos espaços rurais e urbanos. Este proletariado é muito mais extenso e variado do que a massa de operários industriais (inclui suas franjas periféricas e empobrecidas), não é o novo portador da tocha do progresso construída pela modernidade e sim seu negador potencial absoluto o qual, na medida em que vá destruindo as posições inimigas (suas estruturas de dominação), estará construindo uma nova cultura libertária. 

Contudo, a irrupção universal desse sujeita demora, um gigantesco muro de ilusões bloqueia sua rebelião. É que a auto-destruição do sistema global mal está no seu início, sua hegemonia civilizacional ainda é muito forte, é quase impossível prognosticar, estabelecer teoricamente o percurso temporal, o calendário da sua desarticulação. É possível sim estabelecer teoricamente a trajectória descendente, ainda que sem etiquetá-la com datas. 

Utopias (o retorno do fantasma) 

Aqui surge o pós capitalismo como necessidade e possibilidade histórica concreta, como utopia radical lança suas raízes nos passado revolucionário dos séculos XIX e XX e muito mais além, na culturas comunitárias pré capitalistas da Ásia, África, América Latina e da Europa anterior à modernidade. Não se trata de uma etapa inevitável (uma espécie de “resultado inexorável” do declínio do sistema decidido por alguma “lei da história”) e sim do resultado possível, viável, do desenvolvimento da vontade das maiorias oprimidas. 

Na génese do sistema já existia o seu inimigo absoluto, negando, recusando sua expansão opressora. Na Europa, em torno do século XVI, emergiam os desdobramentos coloniais, a indústria de guerra sob moldes pós artesanais, as primeiras formas estatais modernas, os capitalistas comerciais e financeiros associados às aventuras militares das monarquias. E a super-exploração dos camponeses, a destruição das suas culturas, dos seus sistemas comunitários gerando rebeliões como a encabeçada pelo comunista cristão Tomas Müntzer no coração da Europa sob a palavra-de-ordem: “Omnia sunt communia” (Todo es de todos, todas las cosas nos son comunes). 

O amanhecer da modernidade burguesa foi também o da sua negação absoluta. Ambos os lados traziam novas culturas mas ao mesmo tempo herdavam velhas culturas de opressão e emancipação. 

A aliança de banqueiros, latifundiários e príncipes que derrotou os camponeses na batalha de Frankenhausen (Maio de 1525) e assassinou Müntzer unia seus novos apetites burgueses aos velhos privilégios feudais (convertidos em base de acumulação das novas formas de poder) enquanto os camponeses rebeldes reinterpretavam os evangelhos de maneira comunista e assumiam a herança da liberdade comunitária do passado, incluídas valiosas tradições pré-cristãs. A construção de alternativas inovadoras (de opressão e de emancipação) lançava suas raízes no passado. 

Revendo a seguir o século XIX europeu e mais adiante a crise ocidental entre 1914 e 1945 e suas consequências vemos como reiteradas vezes o demónio burguês derrota o seu inimigo mortal, que renasce mais adiante para novamente apresentar batalha. Desde as insurgências operárias europeias até chegar à derrota da Comuna de Paris na era do capitalismo juvenil que já assumia uma dimensão imperialista planetária até chegar às revoluções comunistas russa e chinesa concluindo com a degeneração burocrática e a implosão da primeira e a mutação capitalista selvagem da segunda. 

Na sua prolongada história a civilização burguesa passou pela sua infância europeia até a sua maturidade no século XX e finalmente a sua velhice e degradação senil desde fins do século XX até os nossos dias. 

Na era da decadência do capitalismo vai assomando novamente a figura do seu inimigo. Trata-se de um novo fantasma herdeiro e ao mesmo tempo superador dos anteriores. Um olhar pessimista nos diria que será novamente derrotado. Se isso ocorrer esta civilização planetária ir-se-á submergindo em níveis de barbárie nunca antes vistos uma vez que a sua capacidade (auto)destrutiva supera qualquer outra decadência civilizacional. Agora não está em jogo a sobrevivência de alguns milhões de seres humanos e sim de mais de sete mil milhões. 

Mas esse pessimismo apoia-se na história da modernidade pensada como uma infinita repetição de cenários onde muda a dimensão, a complexidade tecnológica, os modelos de consumo, etc mas fica intacta a dinâmica senhor-escravo, o primeiro controlando os instrumentos que lhe permitem renovar sua dominação e o segundo embarcado em batalhas perdidas de antemão. Dessa maneira é ocultado o facto de que a modernidade burguesa entrou em decadência o que abre a possibilidade da ruptura, do colapso da referida dinâmica perversa, abrindo o horizonte à vitória dos oprimidos. Isso não foi possível nas etapas da adolescência, juventude ou maturidade do sistema, mas é possível agora. 

É o declínio do Ocidente (entendido como civilização burguesa universal) o que abre o espaço para o novo fantasma anti-capitalista que para se impor precisa irromper sob a forma de um vasto, plural, processo de des-ocidentalização, de crítica radical à modernidade imperialista, seus modelos de consumo e produção, de organização institucional, etc. Trata-se então da abolição do sistema no sentido hegeliano do conceito: negar, destruir, anular as bases da civilização declinante e ao mesmo tempo recuperar positivamente em outro contexto cultura tudo aquilo que possa ser utilizável. 

Voltando a Hegel, para superá-lo é necessário afirmar que a marcha da liberdade que ele supunha avançar desde o “Oriente” (entendido como a periferia do mundo ocidental-moderno) para realizar-se plenamente no Ocidente, na realidade avança a partir do subsolo do mundo e pode chegar a dar um salto gigantesco esmagando, ultrapassando os baluartes da opressão ocidental, irrompendo como uma onda universal de povos insurgentes. 

O primeiro fantasma foi europeu de corpo e alma e travou sua última batalha em 1871 na Comuna de Paris. O segundo fantasma assumiu uma envergadura planetária, levantou sua bandeira vermelha na Rússia e na China alentando um amplo espectro de rebeliões periféricas. Tinha um corpo universal mas a sua cabeça estava impregnada de ilusões progressistas ocidentais (o tecnologismo, o aparelhismo, o estatismo, o consumismo). Sua data ou período de falecimento pode ser fixada entre 1978 quando a China entra na via capitalista e 1991 (derrube da URSS). 

O que o século XXI necessita é o desenvolvimento de um terceiro fantasma revolucionário, completamente des-ocidentalizado, ou seja, negador absoluto da modernidade burguesa e por conseguinte universal de corpo e alma, anti-capitalista radical, construindo a nova cultura pós capitalista a partir da confrontação intransigente com o sistema. Herdando os antigos combates, levantando a bandeira multicolor da rebeldia de todos os povos escravizados do planeta, das suas identidades esmagadas, submergidas, convertidas graças aos seus combates e contra-culturas opostas ao capitalismo. 

Em suma, a emergência, a avalanche plural de povos submetidos, da humanidade verdadeira, libertada (em processo de emancipação) da pré história, da história inferior do homem inimigo do seu entorno ambiental, do espaço que lhe permite viver e, em consequência, do homem inimigo de si mesmo. 

Não se trata de uma utopia universal única a apontar a uma humanidade homogénea e sim de uma ampla variedade de utopias comunitárias ancoradas em identidades populares inter-relacionadas, conformando um grande espaço plural marcado pela abolição das classes sociais e do estado.

Notas 
(1) Blanchard, do FMI, diz que a crise durará uma década, www.que.es/… 
(2) Natixis – Banque de financement & d’investissement, La crise de la zone euro peut durer 20 ans , Flash Économie – Recherche Économique, 8 Août 2012 – N°. 534. 
(3) Ansuya Harjan, “Roubini: My ‘Perfect Storm’ Scenario Is Unfolding Now”, CNBC 9 Jul 2012, http://www.cnbc.com/id/48116835 y Nouriel Roubini, “A Global Perfect Storm”, Proyect Syndicate, 15 June 2012, http://www.project-syndicate.org/print/a-global-perfect-storm . 
(4) “Banco de Basilea”, Bank for International Settlements, Monetary and Economic Department, OTC derivatives market activity. ( www.bis.org ). 
(5) Ugo Bardi and Marco Pagani. “Peak Minerals”, The Oil Drum:Europe, October 15, 2007, http://europe.theoildrum.com/node/3086 . 
(6) Patrick Déry and Bart Anderson, “Peak Phosphorus”, The Oil Drum:Europe , August 17, 2007, http://www.theoildrum.com/node/2882 . 
(7) Karl Polanyi, “La gran transformación. Los orígenes económicos y políticos de nuestro tiempo”, Fondo de Cultura Económica, Mexico DF, 2011. 
(8) Roger Dangeville, “Marx-Engels, La Crise”, Union Générale D`Editions-10/18, Paris 1978. 
(9) (Marx-Engels, “La ideología alemana”, 1845-46) en Marx & Engels, Obras Escogidas, Editorial Progreso, Moscú, 1974. 

Textos do autor em resistir.info: 

  • A vida depois da morte: A viabilidade do pós-capitalismo , 07/Set/04 

    [*] Economista, professor na Universidade de Buenos Aires.   Intervenção no Ciclo de Conferencias “Los retos de la humanidad: la construcción social alternativa”, promovido pelo Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades (CEIICH) da Universidad Nacional Autónoma de México, 23-25/Outubro/2012. 

    Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/ .

O Banco do Vaticano é o principal acionista da maior indústria de armamentos do mundo, a Pietro Beretta

O Banco do Vaticano é o principal acionista da maior indústria de armamentos do mundo, a Pietro Beretta

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02 AGOSTO 2012
CLASSIFICADO EM INTERNACIONAL – IMPERIALISMO

imagemCrédito: falsasbanderas

Talvez poucas pessoas saibam que a fábrica de armas Pietro Beretta Ltda. (a maior indústria de armas no mundo) é controlada pela Holding SpA Beretta e que o acionista majoritário da Holding SpA Beretta, depois de Gussalli Ugo Beretta, é o IOR (Instituto para Obras de Religião) [comumente conhecido como Banco do Vaticano], instituição privada, fundada em 1942 pelo Papa Pio XII e com sede na Cidade do Vaticano.

A história por trás de tudo isso é a seguinte:

Roma não foi construída em um dia, tampouco o Vaticano, e menos ainda sua opulência atual. Isso tem suas raízes no século IV da era cristã, quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo e colocou à disposição do Papa Silvestre I uma fortuna colossal – de fato o transformou no primeiro Papa rico na história.

A igreja católica é a única organização religiosa do mundo que tem como quartel-general um Estado independente: a cidade do Vaticano. Com seus 2 Km² de superfície o Vaticano é muito menor do que muitos campos de golf no mundo; e para percorrê-lo sem pressa não se necessita muito mais que uma hora; contar suas riquezas, contudo, levaria bastante mais tempo.

A moderna opulência do Vaticano baseia-se na generosidade de Benito Mussolini que, graças à assinatura do Tratado de Latrão entre seu governo e o Vaticano, outorgou à Igreja Católica uma série de garantias e medidas de proteção. A “Santa Sé” conseguiu que a reconhecessem como um Estado soberano, beneficiou-se com a isenção fiscal de sua propriedade para beneficiar os seus cidadãos, que não precisavam pagar os direitos aduaneiros pelo que importavam do exterior. Foi-lhe concedida imunidade diplomática e seus diplomatas começaram a desfrutar dos privilégios da profissão, igual assim como os diplomatas estrangeiros reconhecidos junto à Santa Sé. Mussolini prometeu introduzir o ensino da religião católica em todas as escolas do país e deixou a instituição do casamento sob a égide das leis canônicas, que não admitiam o divórcio. Os benefícios que o Vaticano recebeu foram enormes – dentre eles, os benefícios fiscais foram preponderantes.

Em 1933, o Vaticano mais uma vez demonstrou sua capacidade de estabelecer negócios lucrativos com os governos fascistas. A concordata de 1929, assinada com Mussolini, foi seguida por outra entre a Santa Sé e o III Reich de Hitler. O gestor Francesco Pacelli foi uma das figuras-chave do pacto com Mussolini: seu irmão, o cardeal Eugenio Pacelli, futuro Papa Pio XII, foi responsável pela negociação como Secretário de Estado do Vaticano, assinando um tratado com a Alemanha de Hitler. Pio XII conhecia bem a Alemanha. Ele fora núncio em Berlim, durante a Primeira Guerra Mundial, e depois, como Secretário de Estado de Pio XI, teve inúmeras intervenções no rumo que estava tomando a política alemã. Nesta qualidade interveio decisivamente na encíclica de Pio XI, conhecida como “Mit Brennender Sorge” (que pode se traduzir “Com preocupação ardente”). A iniciativa da encíclica partiu, ao contrário do que se acredita, dos bispos alemães, sendo o primeiro rascunho escrito em Roma pelo Cardeal Faulhaber. O então cardeal Pacelli, que fala alemão, deu-lhe a forma final, apresentada a Pio XI, sendo então assinada e publicada. Apesar da constante e grande pressão mundial, o Papa Pio XII sempre se negou a excomungar Hitler e Mussolini; seu pontificado foi caracterizado pela adoção de uma falsa postura de neutralidade. Quando os nazistas invadiram a Polônia, o Papa Pio XII se recusou a condenar a invasão; uma das maiores vantagens que obteria o Vaticano do muito lucrativo acordo que mantinha com Hitler era a confirmação de Kirchensteuer, um imposto eclesiástico; trata-se de um imposto estadual que ainda hoje os fiéis alemães devem pagar, e só podem escapar se renunciarem à sua religião. Na prática, muito poucos renunciam. Este imposto representa por si só entre 8 e 10% dos impostos totais arrecadados pelo governo alemão.

http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=4441%3Ao-banco-do-vaticano-e-o-principal-acionista-da-maior-industria-de-armamentos-do-mundo-a-pietro-beretta&catid=43%3Aimperialismo

Jornal austríaco manipula imagem para aumentar o terror na Síria

Jornal austríaco manipula imagem para aumentar o terror na Síria

A enganação foi percebida por uma pessoa cadastrada no fórum reddit e, posteriormente, divulgada pelo site Gizmodo.

Jornal austríaco publicou a foto modificada digitalmente (esq.); na direita a foto original.
Foto: Reprodução/TecMundo/Gizmodo

Como se já não bastasse todo o terror e violência que assolam a Síria nos últimos tempos, um jornal austríaco quis tornar tudo um pouco ainda mais dramático. A publicação teria colocado, em uma matéria sobre os conflitos no país, a imagem de uma família síria abandonando uma cidade que estaria completamente arrasada por bombardeios.

A foto, contudo, foi drasticamente manipulada. A enganação foi percebida por uma pessoa cadastrada no fórum reddit e, posteriormente, divulgada pelo site Gizmodo. No comparativo, é possível perceber que a família realmente está deixando uma cidade no país, contudo, parece que o terror que assola os habitantes locais não foi suficiente para os editores do jornal.

Fonte: Terra

http://planobrasil.com/2012/08/jornal-austriaco-manipula-imagem-para-aumentar-o-terror-na-siria/

Os superricos escondem 32 trilhões de dólares em paraísos fiscais. (E este é um cálculo conservador)

Os superricos escondem 32 trilhões de dólares em paraísos fiscais. (E este é um cálculo conservador)

PAULO NOGUEIRA 22 DE JULHO DE 2012 0

Os paraísos fiscais promovem um inferno nas receitas dos governo

 

Uma elite superrica esconde dinheiro em paraísos fiscais num valor calculado, conservadoramente, em 32 trilhões de dólares, o equivalente ao valor combinado da economia dos Estados Unidos mais a do Japão. Se fosse declarado, esse dinheiro geraria impostos no valor de 280 bilhões de dólares.

No mundo inteiro, esta notícia está dominando os sites de notícias. No momento em que escrevo, pouco mais de três da tarde em Londres, é a matéria mais lida na BBC.

O levantamento é obra de uma organização independente chamada Tax Justice Network (TJN), Rede de Justiça Tributária. A TJN foi fundada na Inglaterra em 2003, e é apartidária. Seu comandante é James Henry, que foi o economista-chefe do colosso da consultoria McKinsey. A TNJ, como se lê em seu site, é fundamente antiparaísos fiscais e pró-transparência.

Reproduzo aqui um comentário postado no texto da BBC, e recomendado por um número expressivo de outros leitores, por considerar que ele representa a voz rouca das ruas na Inglaterra e não apenas nela. “Isso é de conhecimento público há muito tempo. Não haveria crise se os ricos pagassem imposto. Quando o governo vai perseguir este dinheiro em vez de tirar da sociedade benefícios que, comparativamente, são uma migalha?”

Por curiosidade, vi pela manhã um vídeo em que o respeitado jornalista britânico Martin Wolf, comentarista do Financial Times, fala a uma platéia de americanos. “O problema de vocês é que vocês não pagam impostos”, disse ele. Risos nervosos percorreram os ouvintes, que talvez pensassem ser uma piada. Não era. “A receita do Estado com impostos, nos Estados Unidos, equivale a 7% do PIB”, continuou Wolf. “Isso é uma piada. Não dá para sustentar decentemente uma sociedade. Não surpreende que na Europa a expectativa de vida seja maior e a mortalidade infantil menor.”

Wolf não foi preciso apenas numa coisa: o americano comum, o assalariado, paga sim imposto. Quem não paga são os ricos. Foi preciso que um deles, o bilionário Warren Buffett, se insurgisse contra os privilégios dados a seu grupo para que os Estados Unidos despertassem para a questão da justiça fiscal. Num artigo publicado no NY Times, Buffett notou que pagava menos imposto, proporcionalmente, que sua secretária. E clamava à Casa Branca: “Chega de nos mimar!”

Se não provocou efeito nenhum ainda nos Estados Unidos, o brado de Buffett repercutiu na França. Nesta semana, o Congresso francês aprovou uma série de medidas do presidente François Hollande que aumentam o imposto dos ricos.

Alguns milionários franceses vinham ameaçando deixar o país se as novas taxas passassem. Hollande não piscou. Fez bem. Se quiserem partir, boa viagem.

Ricos que não querem pagar imposto são uma receita infalível para arruinar qualquer país. A ausência deles desinfeta a sociedade.

A razão do sucesso extraordinário social da Escandinávia é que lá os ricos entendem que para viver num ambiente saudável eles devem pagar uma taxa alta de impostos.

Lá, ninguém fala em “Custo Suécia”, ou “Custo Noruega”, ou “Custo Dinamarca”, ao contrário de tantos que gritam, por exemplo, contra o “Custo Brasil” — um dos mitos mais perniciosos brasileiros —  apenas para pagar ainda menos imposto e perpetuar a iniquidade social.

 
 

About the author: Paulo NogueiraView all posts by 
Paulo Nogueira é jornalista e está vivendo em Londres. Foi editor assistente da Veja, editor da Veja São Paulo, diretor de redação da Exame, diretor superintendente de uma unidade de negócios da Editora Abril e diretor editorial da Editora Globo.
 

Camarada Caio para vereador! http://caio13555.org/

http://caio13555.org/

Fora os patrões e os pelegos do PT!

Por um governo dos trabalhadores construído pela própria classe!

Socialismo, a saída para a emancipação humana! 

A causa de Bradley Manning é a luta pela verdade!

A vida do militar que passou os telegramas para o Wikileaks

18.07.2012
A vida do militar que passou os telegramas para o Wikileaks. 16916.jpeg

Há dois anos sob detenção, Bradley Manning carrega o gene da informação: seu pai foi agente de segurança, com autorização para acesso a documentos e instalações secretas

Jeremy Harding

London Review of Books, vol. 34, n. 14, ed. 19/7/2012, p. 3-5

(do coletivo de tradutores Vila Vudu)

Sobre o livro de MADAR, Chase. The Passion of Bradley Manning: The Story of the Suspect Behind the Largest Security Breach in US History, OR, 167 pp, £10.00, Abril, ISBN 978 0 19 359285
O que teria empurrado Julian Assange na corrida em busca de espaço extra-territorial amigável? Os detratores dizem que foi movido pelo motor de sempre, a velha história, uma propensão a pôr-se no centro do universo, alvo de uma conspiração improvável para metê-lo numa cadeia nos EUA e jogar fora a chave. Essa derradeira honraria derramou-se sobre Bradley Manning.

Em matéria de vazamentos, os EUA já tem seu herói: por que se preocupar tanto com o editor-celebridade do herói? À frente da Embaixada do Equador, em Hans Crescent, praticamente nos fundos da loja Harrods, mantém-se, ininterrupta, uma presença rala, mas heróica, de apoiadores. Estive lá, no início do mês passado. Vi uma francesa que andava de um lado para o outro, carregando uma placa, que, depois, ela amarrou numa das barreiras que bloqueiam a passagem. Na placa, em mal traçadas letras, lia-se: “Obrigada, Assange, por nos dar a história dos derrotados.”

Pensava em algum Brecht, disse-me ela. Ou, talvez, em Walter Benjamin. Outra figura, mais velha e mais excêntrica, garantiu-me que Assange já se escafedera da embaixada, uma semana antes, por um túnel que passa pelos subterrâneos da Harrods: seguranças da loja lhe contaram tudo. Um terceiro insistia que havia saída pronta, de Hans Crescent, para o homem que já saíra dali pelos esgotos de al-Fayed: primeiro, o governo de Rafael Correa dá asilo a Assange; depois, Assange candidata-se à cidadania equatoriana, que não demora; depois, passa a trabalhar no consulado, em função consular não muito importante, o que lhe garantirá a imunidade diplomática indispensável para percorrer a curta trilha que separa a embaixada e o portão de embarque em Heathrow.

Em recente visita a Queensland – estado onde nasceu Assange – o embaixador dos EUA na Austrália disse que os EUA poderiam extraditá-lo tão facilmente da Grã-Bretanha quanto da Suécia, se tivessem decidido pela extradição. Bob Carr, ministro das Relações Exteriores da Austrália, tampouco dá sinais de pressa: a relutância dos EUA para extraditar Assange da Grã-Bretanha, disse ele, é prova de que os EUA não estão empenhados nessa caçada. Carr é homem conhecido por jamais se afastar do roteiro que o mandem cumprir, mas a ideia de que os EUA possam tirar Assange da GB tão facilmente quanto da Suécia não se confirma. É preciso ouvir, além da opinião dos advogados e auxiliares de Assange, também a opinião, por exemplo, de John Bellinger, ex-assessor para questões jurídicas do Departamento de Estado, quem disse à rede Associated Press de televisão, em 2010, que acusar Assange enquanto permanecesse na GB, poria um aliado leal na difícil situação de ter de assinar uma extradição que lhe criaria problemas graves. O melhor, para os EUA, seria afastar-se do caso:

“Devemos esperar que seja processado na Suécia. Depois, pedimos que os suecos os extraditem para cá.”

O pessoal de Assange acrescenta que, diferentes dos britânicos, os suecos têm tratado de extradição com os EUA, que lhes permite “entrega temporária” [orig. ‘temporary surrender’] de suspeitos procurados por crimes graves, também no caso de serem acusados na Suécia. Esse arranjo pode ser chamado de ‘modelo Panamá’, depois que um telegrama diplomático de 2008, da embaixada dos EUA no Panamá, para Washington – que lemos por cortesia de WikiLeaks – expõe claramente as vantagens desse procedimento:

“Por esse procedimento, o suspeito é ‘emprestado’ aos EUA para ser processado, sob a condição de que será devolvido para ser processado no Panamá depois de cumprida a sentença que os EUA determinem. É procedimento muito mais rápido que a extradição formal e tem-se mostrado tão eficaz, que a DEA, [Drug Enforcement Administration] várias vezes, arquiteta operações para trazer suspeitos ao Panamá, para que possam ser presos no Panamá e, nessa condição, sejam rapidamente devolvidos às autoridades norte-americanas.”[1]

Pesa a favor de Assange a sugestão de que qualquer acusação que se apresente contra ele aplica-se também a Bill Keller, ex-diretor executivo do New York Times, que participou, como parceiro de WikiLeaks na divulgação dos documentos sobre as guerra do Afeganistão e do Iraque e também na divulgação dos telegramas diplomáticos.

Como Chase Madar explica no livro The Passion of Bradley Manning, nada, no material que se diz que Manning teria vazado, é top secret. Dos cerca de 250 mil telegramas diplomáticos, por exemplo, 15-16 mil telegramas são secretos; e menos ainda são para “leitura restrita”. Quanto a arquivos para “leitura restrita”, os telegramas diplomáticos perdem, de longe, para os documentos que Daniel Ellsberg vazou, no auge da Guerra do Vietnã. E, por fim, é opinião generalizada dentro do governo, de que os vazamentos não criaram qualquer risco de segurança nacional. (Os documentos em que se podem ler exatamente isso – um deles saído da Casa Branca – são, eles sim, para “leitura restrita”; os advogados de Manning já exigiram que alguns deles sejam exibidos, exigência acolhida pelo juiz que preside a corte militar que está julgando Manning.)

Seja como for, há muitas razões para que Assange tome todos os cuidados. Dianne Feinstein, presidente da Comissão do Senado para Assuntos de Inteligência, disse, em declaração ao jornal Sydney Morning Herald, no início do mês, que Assange “causara grave dano à segurança nacional dos EUA e deve ser acusado e processado pelo que fez.” Talvez pouco significasse em ano eleitoral. Mas… E quanto aos “telegramas de Stratfor”, a empresa privada de segurança e “inteligência global” com sede no Texas, obtidos pelos Anonymous, coletivo de hacker-ativistas, e divulgados há seis meses pela página WikiLeaks?

Naquele pacote, entre 5,5 milhões de mensagens, várias relacionadas a Assange, uma delas, de Fred Burton, vice-presidente para questões de contraterrorismo e segurança empresarial, diz apenas: “Não comentem por aí: Já temos acusação secreta, formal, contra Assange. Favor não divulgar.” Seja verdade, seja mentira, não é o tipo de informação que Assange possa dar-se o luxo de menosprezar.

Outra razão para extrema preocupação é o quadro estatístico, que Madar resume em seu livro, dos processos e processados durante o governo Obama: nos últimos quatro anos, seis pessoas (inclusive Manning) foram acusados de crimes tipificados na chamada “Lei Antiespionagem” [Espionage Act ] de 1917, por divulgação de informação reservada.

“Embora, como candidato, Obama falasse como amigo e leal protetor dos sentinelas avançados que tocam o apito para alertar contra riscos e ameaças” – escreve Madar -, “é hoje o presidente que mais processou acusados de crimes tipificados naquela lei de 1917; mais que todos os presidentes que o antecederam, somados.”

Assange não está na lista de pagamento do governo dos EUA, diferente de tantos outros, e é problema persistente, que os EUA ainda não conseguiram resolver, agora na Embaixada do Equador, à espera, ouvindo zunir à sua volta os rádios e computadores que zunem, com o pessoal do Ministério do Exterior voando para Quito, e a embaixada dedicada a ampliar os cuidados de segurança, para evitar qualquer tipo de mal-entendido com os britânicos.

Simultaneamente, os e-mails sírios que começam a ser divulgados por WikiLeaks são prova de que Assange não está ocioso, em seus dias e noites na Embaixada do Equador. Empresas ocidentais de segurança, especializadas em tecnologia de vigilância e controle, aparecerão com destaque nos 2,4 milhões de documentos a serem divulgados. No primeiro pacote de documentos já divulgados, o foco é a empresa Finmeccanica, italiana, especialista em Defesa, e as muitas vendas que fez de equipamentos para telefonia móvel em Damasco, não antes de eclodir a ‘questão síria’, mas em fevereiro de 2012.

Bradley Manning, ao contrário, está fora de jogo. É preciso usá-lo como caso exemplar de castigo, porque era soldado a serviço dos órgãos de segurança. Assange pode ser um cruzado, mas não era alistado nas forças armadas dos EUA, e entregou cerca de um milhão de arquivos ligados “a ação significativa” no Afeganistão e no Iraque, e mais um quarto de milhão de telegramas diplomáticos a WikiLeaks. Todos esses documentos foram distribuídos por um soldado atento, no Iraque. Manning, que já está há dois anos sob detenção, primeiro na Base da Marinha em Quantico, Virgínia; agora na prisão de Fort Leavenworth, acusado nos termos da Lei Antiespionagem e, também, por “cooperação com o inimigo”.

Na sua estação de trabalho, num prédio pré-fabricado onde se instalaram unidades da inteligência, no Iraque, Manning rapidamente sentiu que o segredo era como espada a pesar sobre todos os valores que ele prezava. Sentiu, sobretudo, que o sigilo servia de cenário perfeito para todos os tipos de práticas ilegais. E decidiu agir.

Em seu livro, Madar concorda e elogia a “brilhante contribuição de Manning (…) à liberdade e à justiça em todo o mundo” .

Madar conta que, no início dos anos 1990s, o governo dos EUA protegia, sob ordem de sigilo, cerca de 6 milhões de documentos por ano; em 2010, o número já chegava a 80 milhões: o 9/11 explica esse aumento, mas deve-se considerar também a facilidade com que esses documentos podem ser gerados e armazenados. Há também uma nova obsessão com o segredo e o sigilo, em tempos nos quais o estrito controle sobre a informação é o principal aliado de governos que não querem ver o povo organizado e ativo na condução do próprio destino. A escuridão e o sigilo protegem os ditadores. E só a internet lança luz sobre tudo e sobre todos: fonte de energia, para hackers e apóstolos evangelistas da liberdade como Assange; por isso, a internet é hoje o inimigo que todos os poderes autoritários do mundo juraram de morte.

Há alguma diferença entre segredos militares e segredos gerados pelos governos, na administração da vida civil, com guerra ou sem guerra? Parece que sim. E os EUA, além do mais, estão sempre ou praticamente sempre em guerra ou em pé de guerra, aberta ou oculta; e a segurança militar acabou por ter repercussões também no universo do que hoje se chama “sociedade civil”. Ao mesmo tempo, os valores da vida civil não deixam de ser muito fortemente propagandeados também na linha de frente das tropas da Coalizão, para que os soldados não esqueçam as liberdades que estão defendendo, ou implantando. Viver cercado de todos os confortos eletrônicos de casa é parte chave da vida na caserna, nas guerras dos EUA.

O setor onde Manning trabalhava, na Base de Operações Avançada em Hammer era, nas palavras de Madar, “um armazém amplo, sem janelas, cheio de computadores e mesas e fios elétricos”, povoada de gente com acesso liberado aos mais variados níveis de sigilo. Como a tripulação da nave Nostromo em “Alien, o oitavo passageiro”, estacionada em algum ponto remoto do universo, todos ali, naquela nave hermética, viviam, até certo grau, mergulhados numa cultura do lazer e do ócio.

O pessoal, na área de inteligência conhecida como Instalação para Informação Compartimentada de Segurança [orig. Secure Compartmented Information Facility (Scif)], passava horas sem fim navegando à toa, ouvindo-vendo gravações de vídeos dos cantores preferidos que carregavam na mochila, ou queimando mídia para baixar filmes. Manning descreve o cenário e o contexto, na transcrição de uma das pastas de arquivos de conversa que foram entregues ao FBI e aos órgãos de segurança do exército:

todos chegavam e sentavam nas estações de trabalho (…) vendo vídeos musicais/corridas de carros/explosões de prédios (…) e escrevendo coisas em CD/DVD (…) oportunidades culturais que se encontravam (…) o mais engraçado (…) é que se gravavam tantos dados em CDs sem qualquer identificação (…) Todos gravavam (…) vídeos (…) filmes (…) música (…) todos ali, à vista de todos, no aberto, todos viam.

E havia tal quantidade, tão gigantesca, de informação tão devastadora, que comprovava tão completamente que a guerra não era o que se dizia que ela seria. Manning deve ter lembrado de “No espaço, ninguém ouve seu grito”, do Dr. Spock. Mas, com a nova tecnologia, isso já não é bem assim. Chega a ser difícil acreditar que geeks e tecno-revolucionários, tech-libertarians, como Madar os chama, tenham mudado o mundo, tanto e tão completamente como mudaram, de modo tão significativo.

Fato é que sim, podem mudar radicalmente a discussão. E mudar a discussão foi o que fizeram Manning e WikiLeaks em 2010 – confirmação final e exaustiva, de que a guerra do Iraque não passara de erro terrível.

Manning carrega o gene da informação: seu pai foi agente de segurança, com autorização para acesso a documentos e instalações secretas [orig. security clearance], deslocado pela Marinha dos EUA para Cawdor Barracks, Haverfordwest, onde conheceu a mãe de Manning, nos anos 1970s. (Nas mesmas instalações, está instalado hoje o 14th Signal Regiment, de especialistas em guerra eletrônica, capazes de derrubar qualquer discussão – e todas ao mesmo tempo -, quando bem entendam.) Manning Pai estimulou no filho o interesse por computadores e ensinou-lhe programação C++. Madar nos informa que, “aos dez anos, Manning desenhou e pôs em operação sua primeira página de Internet”. O lar dos Manning começou a ruir no início da adolescência do filho; em 2001, sua mãe mudou-se de Crescent, Oklahoma, e levou com ela o filho, para Wales. Quando voltou sozinho para Oklahoma, em 2005, o pai conseguiu-lhe um emprego numa empresa local de software, mas não deu certo. Depois de algum tempo de andar à toa – por Tulsa, Chicago, Washington DC -, Manning afinal decidiu alistar-se no Exército.

Sua vida na caserna foi tormentosa. No outono de 2007, apresentou-se em Fort Leonard Wood, Missouri, mas foi logo mandando para a “unidade de desalistamento”, para onde eram mandados os recrutas considerados não capacitados para o serviço, antes de voltarem para casa. Não tinha altura, não sabia distinguir o certo e o errado, nem o que tinha sentido e o sem sentido algum, era gay. Foi vítima de abusos durante o treinamento básico, por soldados que permaneceriam no serviço militar, e outra vez, na unidade de desalistamento, por gente que não interessava ao exército. Mas Manning foi enviado para uma unidade de reciclagem. Um de seus companheiros nessa unidade, entrevistado ano passado por Guardian Films, disse que teve a impressão de que o exército estava em situação de desespero.

“Em 2007, o número de novos recrutas foi o mais baixo de toda a história. Já não havia mais como baixar o padrão, para conseguir recrutas. Pareciam doidos. Aceitavam qualquer coisa: tatuagem no rosto, baixos demais, altos demais, com ficha policial – qualquer coisa servia. Até aumentaram a idade máxima. Gente com 42 anos, podia alistar-se para treinamento básico. Pegavam qualquer um. O que aparecia por lá, eles pegavam.”

Manning foi para o Arizona, para treinamento para unidade de inteligência e, de lá, no verão de 2008, foi mandado para Fort Drum, estado de New York, onde permaneceu até outubro de 2009. Foi quando foi despachado para a Base de Operações Avançadas Hammer, cerca de 35 milhas a leste de Bagdá, como analista de inteligência no Scif. Ali, como Madar explica, tinha acesso à rede SIPRNet – a rede-mãe usada pelos departamentos de Estado e da Defesa, para transferir dados sigilosos. Tinha acesso também ao Sistema Conjunto Mundial de Comunicações de Inteligência [orig. Joint Worldwide Intelligence Communications System], uma rede fechada intragovernamental, usada pelos departamentos chave, dentre os quais os departamentos de Defesa, de Segurança Nacional, de Estado e da Justiça, para intercâmbio de material sigiloso, de baixo até alto sigilo e top secret. Depois de poucas semanas no Iraque, Manning recebeu autorização para acesso a documentos de alto sigilo.

Madar identifica o momento crucial, nas conversas que manteve sobre os arquivos, que explicaria a desilusão de Manning, sobre como a guerra estava sendo conduzida.

Uma de suas tarefas era investigar um grupo de iraquianos que estavam sob vigilância por terem criticado o governo. Mas, como Manning praticamente afirma, nada haviam feito de errado. Haviam produzido um panfleto intitulado “Para onde vai o dinheiro?”, que um intérprete leu, traduzindo, para Manning; da leitura, Manning concluiu que “o autor do panfleto investigava uma trilha da corrupção no gabinete de al-Maliki”. Manning escreve:

“peguei a informação e *corri* à sala do oficial, para explicar o que estava acontecendo. Ele não quis nem ouvir. Mandou-me calar a boca e explicou que nosso trabalho era conseguir encontrar *MAIS* suspeitos.”

Pela interpretação de Madar, o principal problema não era a censura, mas a tortura, a qual “como Manning sabia perfeitamente, continuava a ser prática comum das autoridades iraquianas, mesmo seis anos depois de o país estar ocupado e sob comando dos EUA”.

“Interrogatório estimulado” [orig. enhanced interrogation] era prática pregada por Rumsfeld. Em 2005, Peter Pace, chefe do Comando Conjunto do Estado Maior dos EUA, tentou introduzir uma lei – todos os soldados dos EUA ficariam obrigados a notificar qualquer prática de tortura no Iraque, de que fossem informados -, mas Rumsfeld antecipara-se e já implantara uma norma secreta, conhecida como Fragmentary Order 242: soldados e oficiais dos EUA não devem intervir nem mover qualquer tipo de ação em casos de tortura praticada por agentes da segurança iraquiana. Manning havia-se posto em posição extremamente perigosa, e podia começar a esperar pelo pior.

Adiante, já perto do final de 2009, apareceu à frente de Manning o vídeofilme – que WikiLeaks publicaria adiante sob o título de “Collateral Murder” [Assassinato Colateral] – filmado de um helicóptero armado, e que mostrava um grupo de pessoas num subúrbio de Bagdá. Verificou a data nos seus arquivos – 12/7/2007 -, colheu as coordenadas pelo GPS e pôs tudo no Google. A primeira matéria que viu, do New York Times, falava de pelo menos 11 mortos – dois dos quais da equipe de jornalistas da Agência Reuters – e várias crianças gravemente feridas. O que se via no vídeo filmado de dentro do helicóptero Apache e os eventos em terra não eram facilmente conciliáveis.

Manning contou ao seu confidente na página de bate-papo na Internet que “não consegui esquecer aquelas coisas dentro do sistema (…) nem dentro da minha cabeça”. Pensou e repensou “neles durante semanas (…) acho que um mês e meio (…), antes de passar adiante o vídeo”. “Neles”, nessa frase, significa “WikiLeaks” – mas Manning não diz. O vídeo foi afinal exibido ao mundo no National Press Club, em Washington, dia 5/4/2010. E o resto é história conhecida.

Dado que não havia cuidado algum de segurança naquela unidade de Scif, foi fácil, para Manning, tomar um CD e uma etiqueta rabiscada com caneta de ponta de feltro (“Lady Gaga”) – e baixar os conteúdos para o CD e “escrever um compressed split file (…) ninguém desconfiou de coisa alguma.” Um ex-agente encarregado da segurança na base Hammer em Bagdá explicou que deve, sim, ter sido facílimo: “Havia laptops espalhados por ali, todos com as senhas anotadas em etiquetas coladas nas próprias máquinas. Qualquer pessoa uniformizada que entrasse, sentava num dos computadores ao meu lado e fazia o que quisesse. Por mim… Que faça o que quiser…”

Em dezembro de 2009, Manning já dava sinais tão claros de stress máximo, que um psicólogo aconselhou que se retirasse a munição de sua pistola de serviço. Na primavera de 2010, estava sendo devorado vivo pelos demônios da própria alma. Dia 7/5, teve um desentendimento com uma oficial superior, na base Hammer, e deu-lhe uma bofetada. Imediatamente, voltou a ser “cabo (de primeira classe) Manning”, perdeu o acesso à sala principal do serviço Scif de inteligência, à qual não voltaria. Foi mandado para a faxina do almoxarifado.

Duas semanas depois, angustiado e solitário além do suportável para ele, cometeu o trágico erro de entrar numa sala de bate-papo e de mensagens instantâneas, onde encontrou Adrian Lamo, hacker-celebridade em Sacramento. Àquela altura, já havia distribuído todos os arquivos, não se sabe como nem para quem. Madar nada diz sobre como os arquivos saíram da base Hammer em Bagdá e só reapareceram em WikiLeaks. Manning está preso, em julgamento, e tudo que tenha feito, dito ou transmitido, online ou offline, aparece, na sóbria narrativa de Madar como “suposto”, ou “alegado”, ou “segundo” uma ou outra declaração.

Lamo emerge na narrativa como personagem cinza pálido, ambíguo, igual a muitos outros cavaleiros andantes dos códigos secretos que vivem de explorar territórios proibidos. A bissexualidade no mundo real e as façanhas como hacker – invadiu a rede do New York Times em 2002 – agiram, em Manning, como abismo que atrai além de qualquer possibilidade de resistência. Manning acabava de “exfiltrar” quantidades imensas de informação; é gay; e vivia rebaixado para um almoxarifado no meio do deserto, perto de Bagdá. Como montanhista que quisesse contar a outro montanhista sobre a vez que enveredou por trilha sem volta, Manning só queria falar; e Lamo era montanhista-celebridade. Sempre fez o que os hackers mais bem fazem: passara anos mudando de página para página, em ambientes reais e virtuais, às vezes cauteloso, às vezes sem nenhuma cautela. A aventura de Lamo pelos labirintos do Times deixara-o com vários grandes danos a pagar – ao jornal, à empresa Yahoo!, Microsoft e MCI – e custara-lhe seis meses na casa dos pais, como parte de pena mais longa. Em 2004 uma ‘ex’ disse, em entrevista à revista Wired, que Lamo a atacara com um pistola de brinquedo. Pouco antes de Manning começar a falar, perto do final de maio, Lamo havia tido alta de um hospital psiquiátrico em Sacramento, onde fora forçado a permanecer por nove dias, depois que um policial entendeu que agia de modo não convencional; como depois se confirmou, ele entrou na delegacia de política para apresentar queixa de roubo de uma mochila.

Naquela página de bate-papo, Manning [codinome: bradass87], abre o coração para Lamo. Parece desesperado. Ás vezes, parece exaltado. Sobre a gigantesca reação desencadeada pelos tiros do helicóptero Apache, Manning escreveu: ”

“vídeo divulgado em 2010, os envolvidos discutem evento, vi os envolvidos discutindo abertamente; adicionei eles como amigos no Facebook (…) e eles nem desconfiam quem sou eu (…) mas tocaram minha vida. Toquei a vida deles (…) o círculo completo.”

Companheirismo sem intimidade é parte do poder curativo da TI para soldados em postos remotos. É também a solução autoevidente para seu impasse moral. Manning explica a Lamo que viu

“coisas horríveis” em “redes secretas”, “coisas incríveis que [pertencem] ao domínio público (…) coisas que teriam impacto na vida de 6,7 bilhões de pessoas.”

Sobre os telegramas diplomáticos, Manning pergunta:

“e podia ter vendido p/ rússia ou china e fazer uma grana?”

Lamo responde: ‘por que não vendeu?’

Manning: porque são dados públicos 
Lamo: falo dos telegramas secretos
Manning: a informação tem de ser livre. pertence ao domínio público

Lamo joga com cartas bem escondidas. Nos excertos que se leem no livro de Madar, das conversas naquela página de bate-papo, Manning fala muito; Lamo fala pouco. Mais uma amostra, em conversa sobre as falhas de segurança na base Hammer em Bagdá:

Manning: era normal. todos levavam CDs para dentro e para fora/era comum
Lamo: foi assim que você conseguiu sair com os telegramas gravados?
Manning: talvez

Dois dias depois de iniciada a conversa, Lamo fez contato com as autoridades federais; manteve Manning falando por ainda algum tempo e em seguida entregou cópia de todos os arquivos de conversas com Manning, ao FBI, em encontro num café Starbucks em Sacramento. A vida, ao ritmo de um cafezinho. Na leitura generosa de Madar, Lamo não teria escolha: “tudo leva a crer que teve de entregar aquela pessoa, com a qual encontrou sem procurar, porque seria Manning ou Lamo. Entregou-o, para salvar-se, o próprio Lamo, de ser sentenciado e preso. Quantos de nós, no lugar de Lamo, teríamos agido de outro modo?”

A lamentar, em todo o caso, Madar insiste, é que ninguém tenha vazado antes: todo o serviço secreto dos EUA, oficiais militares, agentes do governo, dezenas de milhares de homens e mulheres tinham acesso àqueles arquivos e aos telegramas diplomáticos.

Em capítulo de muita coragem moral, “Os vazadores e seu público”, Madar mapeia quantidade imensa de documentos históricos que não conseguiram deter o sinistro cavaleiro da morte e da guerra; que sequer conseguiram fazê-lo avançar mais devagar. “A litania é longa e colossal, de documentos que têm conteúdo suficiente para provocar uma explosão radical no mundo do aparelho da guerra. Mas que, quando chegam a nós, já nada causam nem provocam”, de La Question, de Henri Alleg (1958), sobre sua prisão e tortura pelos Paras em Alger, até os telegramas entre Ellsberg e Karl Eikenberry, vazados de Cabul (2010), onde servia como embaixador.

Eikenberry, tenente-general da reserva, aconselhou, nos termos mais fortes possíveis, que não houvesse qualquer escalada na guerra do Afeganistão. E pediu revisão completa de todo o programa de antiguerrilha dos EUA. “Apesar das credenciais impecáveis de Eikenberry e apesar da queda vertiginosa do apoio popular à guerra, os telegramas de Cabul não impediram a “avançada” de Obama no Afeganistão, nem a intensificação dos ataques com drones.

Manning sempre teve alguma noção sobre a sujeira geral da política, da guerra, da vida e da morte em tempo real. “A apatia” – confidenciou ele a Lamo, seu amigo dos bons tempos na sala de bate papo – “tem sua própria 3ª dimensão.”

[1] Telegrama pode ser lido em http://www.cablegatesearch.net/cable.php?id=08PANAMA704 [em inglês] [NTs].

http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=81930c54e08b6d26d9638dd2e4656dc1&cod=9984

Conflito sírio pode degenerar-se em guerra mundial

Conflito sírio pode degenerar-se em guerra mundial

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18 JUNHO 2012
CLASSIFICADO EM INTERNACIONAL – IMPERIALISMO

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Disparos russos de advertência

Por Thierry Meyssan *

A crise síria está mudando de natureza. O processo de desestabilização que devia abrir caminho a uma intervenção militar legal da aliança atlântica fracassou. Assim os Estados Unidos tiram a máscara e falam publicamente da possibilidade de atacar a Síria sem o aval do Conselho de Segurança da ONU, como ja se fez anteriormente em Kosovo. Ao fazê-lo, Washington finge, contudo, não ter se dado conta de que a Rússia de Vladimir Putin não é a Rússia de Boris Yeltsin. Depois de assegurar-se de que pode contar com o respaldo da China, Moscou acaba de fazer dois disparos de advertência dirigidos a Washington. As contínuas violações de direito internacional por parte da OTAN e do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) podem desembocar agora em um conflito mundial.

Rede Voltaire   | Damasco (Síria) | 9 de junho de 2012

O presidente Vladimir Putin realiza seu terceiro mandato sob o signo da reafirmação da soberania de seu país ante as ameaças contra a Rússia provenientes dos Estados Unidos e da OTAN. Moscou denunciou reiteradamente o processo de ampliação da OTAN, a instalação de bases militares às portas de suas fronteiras, assim como a implantação do escudo anti-mísseis, a destruição da Líbia e os atos de desestabilização contra a Síria.

Imediatamente após sua posse, Putin  passou em revista a indústria militar russa, as suas forças armadas e todo o seu dispositivo de alianças [1]. Como passo seguinte, decidiu traçar na Síria a linha vermelha que o adversário não deve ultrapassar. Aos olhos de Putin, a invasão da Líbia pela OTAN é semelhante à invasão da Tchecoslováquia pelo Terceiro Reich, e a invasão da Síria – se chegar a ocorrer – seria comparável à invasão da Polônia, que desencadeou a Segunda Guerra Mundial.

Qualquer interpretação do que realmente acontece no Levante como uma revolução/repressão restrita à Síria não é apenas falsa, mas também ridícula em vista do que está realmente em jogo, e não haveria nada além de mera propaganda política. A crise síria é, acima de tudo, uma etapa do “redesenho do Oriente Médio ampliado”, uma nova tentativa de destruir o “eixo de Resistência” e constitui também a primeira guerra da “geopolítica do gás” [2]. O que realmente está em jogo na Síria não é saber se Bachar al-Assad conseguirá democratizar as instituições que herdou ou se as monarquias wahabitas poderão destruir o último sistema laico de governo da região e impor seu próprio sectarismo, mas sim quais fronteiras separam os novos blocos que são a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a OCS (Organização de Cooperação de Shangai) [3].

Alguns dos nossos leitores devem ter experimentado um verdadeiro sobressalto ao ler a frase anterior. De fato, há meses os meios de comunicação ocidentais e dos países do Golfo martelam dia após dia que o presidente al-Assad é o representante de uma ditadura sectária em favor da minoria alauita enquanto a oposição armada representa a democracia pluralista. Basta uma simples olhada para os fatos para perceber a falsidade dessa imagem. Bashar al-Assad convocou sucessivamente eleições municipais, um referendo constitucional e eleições legislativas multipartidárias.

Todos os observadores concordam que tais consultas ocorreram com toda legitimidade. A participação popular subiu para mais de 60%, o que não impediu os ocidentais de as qualificarem como “farsas” e que a oposição armada respaldada por potências ocidentais e os países do Golfo tornassem impossível a participação dos eleitores nos 4 distritos sob seu controle. Ao mesmo tempo, a oposição armada tem multiplicado as ações, não só contra as forças de segurança, mas também contra a população civil e contra todos os símbolos da cultura e do multiconfessionalismo.

A oposição armada também está assassinando sunitas progressistas, alauitas e cristãos aleatoriamente – para forçá-los a fugir com suas famílias -, queimou mais de 1.500 escolas e igrejas, proclamou em Baba Amro um efêmero emirado islâmico independente onde instituiu um tribunal supostamente revolucionário que condenou à morte mais de 150 infiéis, que foram publicamente degolados um a um pelos verdugos da própria oposição armada. E certamente não será o espetáculo lamentável que oferecem alguns políticos venais – reunidos em um Conselho Nacional Sírio criado no exílio, que acenam com um projeto democrático de fachada que em nada se parece com a realidade imposta no território pelos crimes do chamado Exército “Sírio” Livre – que vai conseguir evitar por muito mais tempo que a verdade venha à tona.

Quem pode acreditar, no entanto, que o regime laico da Síria, celebrado até recentemente como exemplar, de repente tenha se convertido em uma ditadura religiosa, enquanto o Exército “Sírio” Livre, respaldado precisamente pelas ditaduras wahabitas do Golfo e discípulo respeitoso dos pregadores takfiristas, é um modelo de pluralismo democrático?

A menção, por parte dos dirigentes estadunidenses, de uma possível intervenção internacional na Síria sem aval da ONU, seguindo o modelo da que provocou o desmembramento da Iugoslávia, tem causado preocupação e cólera em Moscou. A Federação Russa, que até agora tinha se mantido em posição defensiva, decidiu tomar a iniciativa. Esta mudança de estratégia é devida ao caráter urgente que reveste a situação, do ponto de vista russo, e à evolução favorável sobre o tema na própria Síria [4].

Moscou acaba de propor a criação de um Grupo de Negociação sobre a Síria que reuniria em seu seio todos os Estados implicados, ou seja, tanto os Estados vizinhos como as potências regionais e internacionais. Trata-se de criar um foro de diálogo em lugar do atual dispositivo belicoso instaurado pelos ocidentais sob a denominação orwelliana de “Conferência de Amigos da Síria”.

A Rússia segue respaldando o Plano Annan – que não é na verdade outra coisa que uma versão apenas modificada do plano com que Serguei Lavrov havia presenteado a Liga Árabe. A Rússia lamenta a não aplicação deste plano, mas atribui a responsabilidade da sua não aplicação à facção da oposição que tomou as armas. Segundo A. K. Lukashevich, um dos porta-vozes do ministério russo de Relações Exteriores, à luz do direito internacional o Exército “Sírio” Livre é uma organização ilegal que, apesar de assassinar diariamente 20 ou 30 soldados dírios, segue gozando publicamente de apoio dos países membros da OTAN e do Conselho de Cooperação do Golfo, o que constitui certamente uma flagrante violação do Plano Annan [5].

Apostando em favor da paz, diante de uma OTAN que aposta abertamente pela guerra, Vladimir Putin pediu à OTSC (Organização do Tratado de Segurança Coletiva) para que se prepare para uma implantação de “chapas azuis” na Síria. O secretário-geral da OTSC, Nikolai Bordyuzha, já confirmou que conta com 20.000 homens imediatamente disponiveis e perfeitamente formados para este tipo de missão [6].

Seria a primeira vez que a força de paz da OTSC implanta uma força de paz fora do antigo espaço soviético. Em um claro sinal de nervosismo, o secretário geral da ONU Ban Ki-moon imediatamente tratou de sabotar a iniciativa russa, propondo ele também organizar um Grupo de Negociação.

Ao reunir em Washington o Grupo de Trabalho sobre as sanções da Conferência dos Amigos da Síria, a secretária de Estado Hillary Clinton simplesmente ignorou a proposta russa e intensificou suas chamadas para a mudança de regime [7].

Na Turquia, os parlamentares da oposição visitaram campos de refugiados sírios. Ali puderam comprovar a ausência de mais de mil refugiados contabilizados pela ONU no mais importante desses acampamentos, onde ainda encontraram um grande arsenal. Assim decidiram interrogar na Assembleia o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan e exigir-lhe a divulgação da quantidade de ajuda humanitária concedida a esses refugiados fantasmas. Os deputados consideram que o campo de refugiados  na realidade serve como cobertura para a realização de uma operação militar secreta. Este acampamento abriga, na verdade, combatentes provenientes principalmente da Líbia, que usam esta instalação como base de retaguarda. Os deputados emitiram como hipótese que se trata, ademais, de combatentes que adentraram o distrito de Hula precisamente no momento do massacre denunciado nesta região.

Estas informações confirmam as acusações emitidas pelo embaixador russo Vitaly Churkin diante do Conselho de Segurança da ONU. Segundo o diplomata russo, o representante especial de Ban Ki-moon na Líbia, Ian Martin, tem utilizado recursos da ONU, inicialmente destinados para os refugiados, para enviar a Turquia combatentes da de al-Qaeda [8].

Na Arábia Saudita manifestou-se novamente a divisão entre o rei Abdullah e o clã dos Sudairis. A pedido do Rei Abdullah I, o Conselho de Ulemas publicou uma fatwa declarando que a Síria não é uma terra de jihad. Ao mesmo tempo, no entanto, o príncipe Faisal,  atual ministro das Relações Exteriores, lançou um chamado para armar a oposição síria contra o “usurpador alauita”.

A quinta-feira, 07 de junho, foi um dia agitado. Enquanto Ban Ki-moon e Navi Pillay – que são, respectivamente, o Secretário-geral da ONU e Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos – pronunciavam suas posições contra a Síria diante da Assembléia Geral da ONU, Moscou realizava dois testes de lançamento de mísseis balísticos intercontinentais.

O nome do míssil “Bulava” vem da palavra que designa o bastão de marechal dos exércitos cossacos.

O coronel Vadim Koval, porta-voz da RSVN (Tropas Balísticas Estratégicas Russas), reconheceu a realização do lançamento de teste de um míssil Topol – a partir de um local próximo ao mar Cáspio – mas não confirmou o do míssil Bulava a partir de um submarino no Mediterrâneo. Esta último lançamento foi visto, no entanto, em todo o Oriente Médio, de Israel à Armênia, e não se conhece nenhum outro tipo de arma capaz de provocar os efeitos visuais que foram observados no céu da região [9].

A mensagem é clara: se a OTAN e o Conselho de Cooperação do Golfo não respeitam as obrigações internacionais já definidos no Plano Annan e estão empenhados em alimentar o terrorismo, Moscou está disposto a enfrentá-los, mesmo às custas de uma guerra mundial.

Segundo nossas informações, estes disparos de advertência estavam coordenados com as autoridades sírias. Moscou, que já anteriormente havia estimulado Damasco para que procedesse a liquidação do emirado islâmico da Baba Amro imediatamente depois do referendo constitucional que confirmou a autoridade do presidente al-Assad, também incitou agora o presidente a liquidar os grupos de mercenários presentes no país desde o instante seguinte à investidura do novo parlamento e do novo primeiro-ministro sírio. Deram-se então ordens de passar de uma estratégia defensiva para uma ação ofensiva que tendesse a proteger a população frente às ações terroristas. O exército nacional sírio passou, então, à ofensiva contra os bastiões do Exército “Sírio” Livre. Os combates dos próximos dias podem ser difíceis, uma vez que os mercenários dispõem de morteiros, foguetes anti-tanque e mísseis terra-ar.

Na tentativa de aliviar a tensão, a França aceitou imediatamente a proposta russa para participar de um Grupo de Negociação ad hoc. Washington, por sua vez, enviou Frederic C. Hof para Moscou. Contrariando inclusive as declarações que fizera no dia anterior à sua própria secretária de Estado, Hillary Clinton, o Sr. Hof aceitou o convite russo para participar do novo Grupo de Negociação.

Ficou pra trás o momento de lamentar-se sobre a extensão dos combates no território libanês, ou de filosofar sobre uma possível regionalização do conflito sírio. Em 16 meses de manobras desestabilizadoras contra a Síria, a OTAN e o Conselho de Cooperação do Golfo criaram uma situação sem saída que agora pode converter-se em uma guerra mundial.

Thierry Meyssan

[11] Agenda do presidente Putin:

07 de maio: posse do presidente Vladimir Putin

08 de maio: nomeação de Dmitry Medvedev como primeiro-ministro

09 de maio: celebração da vitória sobre a Alemanha nazista

10 de Maio: Visita ao complexo militar-industrial russo

11 de maio: Recebe o Presidente da Abkházia

12 de maio: recebe o presidente da Ossétia do Sul

14-15 de maio: encontro informal com os chefes de Estado dos países membros da OTSC.

18 de maio: Visita ao Instituto de Pesquisa de Defesa Cyclone

25 de maio: Revista aos submarinos nucleares

30 de maio: Reunião com os principais responsávels pelo setor de defesa

31 de maio: Reunião do Conselho de Segurança Russo

04-07 de junho: Visita à China, Cúpula da OCS

7 de junho: Visita ao Cazaquistão durante o teste de lançamento do míssil Topol

[2] « Siria, centro de la guerra del gas en el Medio Oriente », por Imad Fawzi Shueibi, Réseau Voltaire, 8 de maio de 2012.

[3] « Moscú y la formación del Nuevo Sistema Mundial », por Imad Fawzi Shueibi, Tradução ao francês de Marie-Ange Patrizio, Réseau Voltaire, 13 de marzo de 2012.

[4] « El caso de Hula demuestra el retraso de la inteligencia occidental en Siria »,por Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 2 de junio de 2012.

[5] « Comment of Official Representative of the Ministry of Foreign Affairs of Russia A.K. Lukashevich on the Question of Interfax related to the statement made by Representative of so-called Free Syrian Army S.Al-Kurdi », Ministère russe des Affaires étrangères, 5 juin 2012.

[6] « Siria: Vladimir Putin propone una Fuerza de Paz de la OTSC », Réseau Voltaire, 3 de junho de 2012

[7] « Friends of the Syrian People Sanctions Working Group », déclaration à la presse d’Hillary Clinton, Département d’État, 6 juin 2012.

[8] « Libia, los bandidos-revolucionarios y la ONU »,por Alexander Mezyaev, tradução ao francês de Julia, Strategic Culture Foundation (Rusia), Réseau Voltaire, 17 de abril de 2012.

[9] « 07 de junio 2012: Rusia demuestra su superioridad en misiles balísticos intercontinentales nucleares », Réseau Voltaire, 8 de junio de 2012.

*THIERRY MEYSSAN: intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. Suas análises sobre política exterior publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra publicada em espanhol: La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Durante a celebração da Vitória contra o nazismo, 9 de junho, o presidente Vladimir Putin insistiu que a Rússia deve estar pronta para aceitar um novo sacrifício.

O nome do míssil Bulava vem da palavra que designa o bastão de marechal dos exércitos cossacos.

http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=4204:conflito-sirio-pode-degenerar-se-em-guerra-mundial&catid=43:imperialismo

China e Japão deixaram de usar dólares em negócios entre os dois países

China e Japão deixaram de usar dólares em negócios entre os dois países

1.06.2012, 11:38

China e Japão deixaram de usar dólares em negócios entre os dois países

Foto: EPA
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A China e o Japão iniciaram o comércio direto de moeda entre si sem usar o dólar. O corredor, utilizado para o comércio entre o yuan e o yene, é mais largo do que o para o par yuan-dólar.

Conforme o acordo, os reguladores chineses estabelecerão cotidianamente o índice de câmbio, que poderá ser alterado 3% pela Bolsa. No par dólar-yuan as mudanças não podem superar 1%.

As ações comerciais serão efetuadas nos mercados em Xangai e em Tóquio. Muito provavelmente, no início o índice será diferente no Japão se comparar com o da China, mas no futuro eles deverão tornar-se iguais.

(corrida armamentista?) Países da América Latina projetam avião militar

Países da América Latina projetam avião militar

 
1.06.2012, 09:35

Países da América Latina projetam avião militar

© Flickr.com/jjay69/сс-by-nc-sa 3.0
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Os estados, que fazem parte da União de Nações Sul-Americanas, começaram a criar o próprio avião militar.

A informação correspondente foi divulgada pelo canal televisivo venezuelano Telesur.

O encontro de negócios dos expertos técnicos da organização decorre nesta semana na cidade argentina de Ascochinga, nele são discutidos os detalhes do design e das pespectivas da produção do primeiro avião militar conjunto.

Ainda não há informação precisa sobre a data e local do início da fabricação dos aviões.

http://portuguese.ruvr.ru/2012_06_01/Paises-America-Latina-projeto-aviao-militar/

(corrida armamentista?) Países da América Latina projetam avião militar

Países da América Latina projetam avião militar

 
1.06.2012, 09:35

Países da América Latina projetam avião militar

© Flickr.com/jjay69/сс-by-nc-sa 3.0
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Os estados, que fazem parte da União de Nações Sul-Americanas, começaram a criar o próprio avião militar.

A informação correspondente foi divulgada pelo canal televisivo venezuelano Telesur.

O encontro de negócios dos expertos técnicos da organização decorre nesta semana na cidade argentina de Ascochinga, nele são discutidos os detalhes do design e das pespectivas da produção do primeiro avião militar conjunto.

Ainda não há informação precisa sobre a data e local do início da fabricação dos aviões.

http://portuguese.ruvr.ru/2012_06_01/Paises-America-Latina-projeto-aviao-militar/